Compreendo o meu estado; meu eu que não eu. Demência. O catre me vitima e me assiste fadadamente e fadado fico. Não como desencanto das bruxas. Essas me aliviam a dor com seus ungüentos e sob efeito destes, acabo relutante como as covinhas de minhas ancas, atento a última golfada de ar suspirar os caprichos que daqui exponho. Se a medicina tradicional não dá cabo, diz a natureza operar seus milagres e a ela se apegam, como eu, politeístas cristãos a claro céu enegrecido das encruzilhadas...despachos de velas coloridas. Envolto na nesga que me traz ao presente, descoloro as pílulas do antes pelo fumacê do depois. Vou a benzedeira; minha última esperança. Agora durmo e sonho e pesadelo.
Estávamos à beira do rio fino de água que corta San Thomé. Do barulho se ouviam grilos e água seguindo seu derradeiro curso. Primitivo o sentido da nossa roda e fogueira ao centro; o estalar dos gravetos em brasa. A platéia de estrelas cintilantes formavam o espelho, onde víamos nossos próprios olhos. Nas mãos: sacos plásticos em cola de forma ausente, com que saíamos de nossos corpos para visões de nossas vidas. Flap flup flap flup. O saco plástico imitava o movimento do diafragma-pulmão. Imitava o momento anterior ao sono profundo...arquejante, spaccio, arquejante, spaccio, contração, spaccio, respiração, pausa, ritmo, coração, fluxo sangüíneo, diminui cadência, compasso diminui, estado alfa-beta...durma.
A mulher de Jó estava sentada na roda de pragma e nos observava temendo repetir-se o caminho que fizera ao olhar para traz. Olhou repentinamente como a me reprovar pelo intento; quase súplica do vício da razão de alterar o espírito presente a drogadição do estado alterado da mente. Não me importei. Não era para tanto, pois não cabe a mim julgar uma visão. Só a viagem daquela fração de segundo poderia explicar mil motivos em minutos finitos: de como o homem se sente poderoso e mesquinho ao dar valor a descrença; ao ato de violar o segredo do xamã.
Aquilo ocorreria mais vezes, mais e mais e pedia que cessasse. A bad trip era sempre a mesma. Me via cercado em uma cratera lunar. Dela brotava sulcos de terra; leiva a misturar-se ao cheiro de enxofre; carne em corpos defumados após a queda de um meteorito. A fumaça envolvia negro o horizonte e impedia o sol de beijar a terra. Após, ouvia gritos desesperados de crianças que corriam sem direção feito baratas envenenadas. Seus rostos traziam feições de abandono. Eu mecanicamente repetia o mesmo: “é o fim, é o fim... acabou o mundo. Acabou e ficamos nós três: o pai, o filho e o espírito santo”.
Bem mais tarde depois de ingerir leite - parte da nossa desintoxicação - lembrava da infância/adolescência quando um amigo da escola contava nos dedos os anos para o fim do mundo. Para ele, o mundo acabaria a meia-noite do ano dois mil. Para minha avó que não era vidente, a vida tinha fim quando corria a primeira lágrima da carpideira, ou quando relembrava cada nome gravado na lápide, data de nascimento e morte de ente-queridos. Isso não a impedia de fazer seus presságios: “o mundo acabará em fogo. Assim seja feita a vontade daquele que é o verdadeiro pai e criador”.
Tudo voltava. Via meus amigos de pragma em suas viagens pessoais. Um ria do pealo que o peão levara do cavalo. Outro se punha de pé, imitando um surfista a pegar uma onda gigantesca. E eu pincelava o céu com meus dedos a procura do zodíaco. Ficávamos sem noção do tempo, entregues à noite e ao silêncio das horas. Ouvíamos nossas respirações e a inquietude serena do bucólico ser inanimado com que convivíamos... os nossos fantasmas.
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A sociedade julga por demais os vícios e sofregamente os viciados. Não sabe ela estar envolta numa carapuça, armadilha não ilusória. Conquanto insiste em negar a natureza humana por achar demasiada perfeita a razão de se entregar clandestinamente ao que lhe parece verdadeiro. E assim, confortável e pura de espírito não responde por seus atos conservadores; moralmente ultrapassados se dizem juízes da incompreensão que não está nas palavras, mas naquele que não ouve e não vê a negação: a pedra na mão do pecador.
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1 comment:
Gostei muito dos textos postados nesse aqui. Esse blog é excelente. Tem muita qualidade. Parabéns!
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