Sunday, March 18, 2007

Hipocampo Condríaco

- Assim como a ordem das coisas no sentido natural da matéria animal, vegetal e mineral, elementos consignos da constituição da matéria amorfa (o meu corpo convalesce da desordem química), me atrevo a falar dos vícios, das fraquezas, da flagelação do espírito numa urbe onde a mera desculpa do câncer é chamada de controle social: o hipocampo condríaco. As elites, digo a meia dúzia de brasões desta comuna, foi há muito bem instruída, por de certo, na mortalha de seus antepassados, no poder de manter o status quo eternum. Duas grises se engalfinham em determinados quadriênios como seus avós, trisavós no ápice da crença do desenvolvimento e estagnação. E da boca braba deles saem as mais proverbiais, coloquiais palavras de conforto - compradas e surtidas balas de caramelo a adocicar as promessas de crianças que não vêem a gosma, a baba gelatinosa pendente do tecido social, a irracionalidade humana.

Enquanto isso, ganhado o pleito, se ajeitam cargos para próceres autodenominados doutores e incultos do analfabetismo político, cabildê de emprego para os compatriotas de mesmo lenço, necessidades providas do enfermo em consultas médicas, ipisis...tudo mantido e ordenado em conchavos de alternância estática e sem efeito entre as partes nesta mesma ordem elementar e natural dos vícios. Mas e os químicos solventes para os jovens, colerizando toxicofóbicos, hipocondríacos anestésicos, barbitúricos calmantes para as madames, analgésicos e alcoolizantes para os homens, que na graduação inebriante de pílulas coloridas, nos líquidos de cor biliática encontram a fuga, e cada um, a sua maneira, escondem fraquezas, como se a cada volta, cada anelo de anos tiram o sopro da vida gradativamente.

O tempo vai se esmoendo, o tempo dos hiperbóreos. Em festins de fraque-rabo-de-pingüim, em clubes, na tasca, no boteco-armazém, nas ladeiras, nas coxilhas monarcas do meu pago, eles vivem sem terem vivido sequer um transe acordado...vão vivendo simplesmente pela despreocupação feliz das carretilhas retas da cancha, em apostas de patrimônios, de vidas humanas como moedas de troca. Esses hiperbóreos de Apolo, abençoados e odiados pelos deuses, escravizam e dominam a ingenuidade de seus concidadãos.

Bebem medidas homeopáticas da cicuta que ferem a existência dos demais.
Os seres do ser tornam-se pensantes, tênues e suaves para ludibriar, persuadir e, por fim, enganar a carne morta a caminho do matadouro, do sacrifício. E nos bares, entre um gole e cuspidas ruminantes no chão batido, um martelinho de cachaça substitui o martelo do carrasco que, lúgubre, cotó, sorve-o num trago para dali, duas quadras depois, levantar a ferramenta de trabalho com o único prolongamento do braço musculoso sobre a fronte de vacuns - o meio-homem, o meio-bicho. E depois, e depois... de volta aos bolichos nas tardes mormacentas de verão, enfastiados de marcar paletas, curar bicheiras, tosar, sovar o sovéu num pingo, moer a terra, os chifres com as mãos - é hora de amargurar o mio-mio -, com um bolo de massa sangrenta na mão, pedem ao bolicheiro um “papel pra embrulho” e uma “branca purinha para aliviar a alma, o espírito”. Esparge a melancolia naqueles rostos, prosseguindo na faina, no pensamento do subalterno-homem. Encontram nas ampolas, no copo de cana, na fumaça negra do fumo de rolo, nas pílulas azuis, vermelhas, verdes, grenás e, apelam para as negras cápsulas cônicas somente quando as outras se tornam sem efeito. Daí adiante a dose passa a ser diagnosticada, receitada em maior graduação.

E o bêbado é mais difícil de se domesticar, dizem porquê, são donos de si.
E julgam a julgar dos outros que inexiste fraqueza nos seus vícios íntimos, reconhecimento da burrice do doente sem cura do estrato social. Gado apartado, rebanho confinado de zumbis robóticos propelidos à cólera à la vonté. Nauseabundos, surumbáticos cadáveres que se arrastam as porções, se engabelando da justiça divina e terrena, providência paga com fé de fiel depositário, com confiança marcada a brasa e assinalada na testa das bestas. E vão andando em filas feito muares de carga, massa de manobra de intendentes a gozar o gozado humor do sofrimento coletivo, sem dor, anestesiados que estão pelo deslumbre da plebe com a possibilidade de a sorte também bater a porta dos penitentes.

E lá se vão eles, senhores da valentia restante numa gota no fundo da garrafa, com suas naifas afiadas para a degola trazidas à cintura. Nas sarjetas arrebatadas de esperanças, nas glosas de sangue que colorem o meio-fio da calçada. E o velho Vertigê, em entreveros onde a coragem e o pegar à traição são coisas medonhas na arte de se defender da máscara social. Sobrevive a talhos, a nacos de pele esfolada no último requinte de crueldade, mostra, exibido, esbaforindo bafos de pinga, as costas repicadas a ponta de faca colhida em duelos, nos botecos da cidadela...até achar a morte.

Soa incrustada no vozerio que vem do palanque armado e decorado de santinhos, da língua do “louco” Apitcha encarando uma platéia imaginária, com o dedo em riste, esbravejando vocábulos sonoros incompreensíveis em direção aos diretórios, as árvores da praça quase humanas, aos ouvidos do orador, da nossa nata gente que se diz curada por milagres do verbo. Pobres coitados, pobres andarilhos dos arrabaldes, vítimas das falcatruas da ignorância contida de seus senhores, vaidades seculares de má gestão pública, de agouro. Falta à educação, a saúde quem deveras não coasse como a seca que mata a sede no poço das canduras inocentes (falsa esperança).

Ohhh, doutores. Se esvai ao longe, nas ruazinhas barrentas, carentes de pedregulhos, a se agasalharem na palhoça suarenta de paredes de barro socadas com palha de milho, cobertura de capim, a recobrir os cômodos que acomodam tristes fiapos andejantes de fina prata. E dos campos, os gaúchos, cavalheiros altivos de antigamente, corpanzis retovados sobre as montarias, soltam gritos de Sapucaí, de aspirações libertárias frustradas pela sesmeira egoísta do patrão e do capataz, d´umas pupilas negaceadas de peão à toa, fazendola da imaginação, engordam as invernadas, desesperados, incham o pulmão do pátio numa procissão tristonha de êxodo rural, pára, depois, seguir como urbanóides sua gênese na periferia do micróbio-mundi.

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