Friday, December 08, 2006

Eletro-magnetismo-hipnótico



Sinto o sentido faltar-me. Não ouço nem vejo mais como antes, não enxergo a cegueira em palavras caluniosas ou malexpressadas, não tenho o paladar para distinguir o mel do açúcar nos lábios, nem os dedos alvos como dentes-de-leite, e agora escamosos como o couro da cobra ao trocar de pele ou a penetrar nas tuas entranhas. Acho que falta tudo, ou falta tudo no que acho que faltava! Sinceramente, não sei. Eu me recordo (Fellini), e só, e basta. Por quê? Mesmo que tenha vivido e levado uma vida tranqüila – não tive doenças graves, nem faltei com a gravidade de um enfermo – é nesta fase da nossa curta existência que as coisas (refiro-me a “coisa” como um todo e a tudo, pois coisas são valores dados aos bens materiais e espirituais, inclusive no sentido de ser humano; que importância teria os inanimados? Dharma? Vazio?), as coisas ao natural fluem como o leite pastoso que mais tarde virará queijo. É uma questão de ponto de equilíbrio.

Tudo são memórias factíveis, desconexas do hoje e, nesse emaranhado de fios que nos ligam ao desejo da eternidade, retomamos aos cabelos grisalhos, como se pudesse, neles, contar cada dia, cada mês nos nós das mãos, da nossa vida ou de nossa não-morte, que tarda será tampouco o corpo num estado de decomposição química, de verme amarelo-ouro a carcomer a pele antes branca e agora necrosada.

Então, a memória fica na semente, como os ipês e jacarandás em transformação folhosa, onde o vento empresta a hospedeira, e a folha-semente vai acomodar-se a terra que, por sua vez, ao engoli-la dará uma nova vida e, assim por diante, por gerações, jus solis, jus sanguinis. Lembranças que em três gerações esqueceram o mesmo nome antes gravado à sepultura.
Talvez essa ingenuidade de querer lembrar quem fomos e o que fomos no passado, se justifique pelo simplório sentido da onipresença misteriosa que morrerá, nascerá e morrerá novamente como a alma que toma emprestada o corpo. Talvez, como essa divagação. Porque o homem morre sem saber o real sentido da existência. Quem sabe não seria por temer o desconhecido? Não! Simplesmente porque é preciso acreditar. Ou, sei lá!

Mas como dizia: na velhice as reminiscências ganham uma importância dantesca, céu e inferno; de relembrarmos o que na juventude esquecemos por desejarmos o purgatório. Somos capazes de encontrar no recôndito da mente aqueles espasmos de memória mais insignificantes, que, estanque, não valiam nada e assumem o cerimonial de contar aos outros as inverdades daquilo que foi proibido para nós, ora por ser deveras frustrante, ora porque escondemos de nós mesmos as meias-verdades. Os tins-tims por tins-tims reaparecem ali, do nada, e vão se soçobrando ao entardecer de cada história contada ao pé-de-ouvido, com o sol morrendo na planura azul do horizonte, como o estribo em formato de arco-capela-igreja ao alojar estes pés descalços e cansados da longa jornada nas ancas de um cavalo alado, unicórnio, pegasus estrelado à noite, a cortar campos sem cerca nem moirões. São espasmos elétricos de um, de um...

Às vezes, nessa idade, a memória nos faculta em tudo. Certas habilidades psicomotoras carecem exageradamente de um esforço descomunal. Ah, sim. Epilepsia, choques anafiláticos conduzindo descargas elétricas na velocidade da luz: zun-zum, como o bater das asas da abelha, do beija-flor, impercebíveis a olho nu; um bilionésimo de segundo e pã!, tudo está feito, retoma-se o elo perdido da ingenuidade, a ligação entre a timidez e o extrovertido, a falta de experiência que na criança se aloja à maturidade que lhes faltará na velhice.

Tuesday, December 05, 2006

Do Diário - A cegueira

A sombra negra assoma-se na parede. Vejo com perfeição o partido imperfeito três vezes maior que o tamanho de um corpo curvado, retorcido pela velhice, desfalecer na amurada do dia-a-dia. É chegado o momento, mas antes, na escuridão que insiste em cerrar meus olhos túmidos, betumados por sendas ralas que se estendem do supercílio ao cílio branco, eu, Renê de Enfant, tenho um pedido. Peço. Quero um enterro digno. De preferência semelhante às honrarias militares. Não desses comuns, onde o cortejo em linha, com fuzis reluzentes e fardas engomadas, trazem no semblante dos soldados da pátria, a tristeza de uma guerra que não acontece e estes ficam guardados nos quartéis a espera do trovejar dos fogos fictícios. Onde o esquife de cedro é conduzido em passos de esquerda-direita-volver, com o pavilhão hasteado em perpendicular ao corpo do oficial encarregado, sisudo, emudecido, ao olhar da guarda-fúnebre que aguarda a ordem de “fogo!”, enquanto, ao longe, pelos galões que trazem nos ombros, lhes reservam o direito de 24 salvas de canhão pela constelação galgada num “Sim, senhor!!!”, “Não, senhor!!!”. Eterno.

Quero que o sino do Pantheon badale 24 vezes para anunciar, não a morte de mais um cristão, mas uma nova vida que nascerá com o choro de uma criança no mesmo instante há cinco quadras dali, como para mim também o foi num dia de inverno. Mais ainda pelo soldado fiel, o pau-pra-toda-a-obra nas distintas frentes, carregadas por essa carne morta, esquelética e robótica. Aqui neste catre, o gelo já me consome que os delírios loucos, de uivos de lobo, permitem ter ainda um cadinho de tempo para o meu monólogo.

A ingenuidade me faz voltar ao tempo de criança, mesmo que depois deste opúsculo de maturidade, quando aprendo a sentir um quê entre verdade e mentira, a distinguir na inocência de criança que não sabe mentir, porque na velhice retomo o ar senil sem temer o ocaso dos anos findos. É o instante do cíclico, do fazer presente, futuro, passado. O anchio sabe mas reluta em reconhecer que apesar das novas rugas, cortes retilíneos cortando a pele de um extremo ao outro do corpo nu, a ingenuidade de criança volta nos ardores da puberdade. Assim, envelheço com meus chiliques trôpegos de aldeão-consultor - a dar conselhos -, relembrando em cada cruz deste cemitério, qual foi à alma que deu nome a lápide talhada no mármore frio que, as mãos, agora, tocam... na estrela do nascimento e na cruz da morte.

Sunday, December 03, 2006

Do Diário - Sonho Surreal

Era uma noite de extremo negrume, não havia estrelas no céu e a lua estava encoberta por nuvens espessas que se confundiam com a própria escuridão. Eu caminhava ao longo de uma estrada gramada, as suas extremidades o era de um verde espantoso. Sei que era grama porque meus pés estavam descalços e vez ou outra os espinhos das rosetas roçavam as plantas dos pés. No sonho não sabia como havia chegado ali. E aquela escuridão me apavorava, exceto pela sensação de calma em que meus pés se encontravam ao afundar naquele campo, naquele tapete verde. De repente fui tomado de uma angústia. Foi tão rápido quanto o processo de alteração de estágio de sonho, passando a beta num estalar de dedos. Não distinguia nada a meu redor, mas os sons vinham nitidamente como se tivesse somente ouvidos. Um cão latia não muito longe dali. Isso me chamou a atenção e numa fração de segundo olhei para o alto e a lua começou a furar aquela nesga de nuvem, numa coloração mais de cinza-prata do que branco-escuro. Olhei para o lado e vi dois mastros de madeira arredondado formando uma espécie de coreto de praça... Apenas subiam verticalmente, como se ligassem a terra ao espaço. Por instinto passei no meio deste marco e comecei a correr num terreno primeiramente plano, passando ao declive e, depois plano novamente, e depois a escuridão se fez de novo, e eu corria e corria seguindo os latidos desesperados do cachorro, que aumentavam na medida em que me aproximava. Parei repentinamente. Lembro de ter me abaixado, mas não me recordo o que procurava no chão.

Quando me dei por conta estava com um cão pequeno junto ao corpo. Os latidos foram cessando de um alarde gutural para um gemido, e uma sensação de calma invadiu o filhote que se calou por completo pressentindo a segurança de meus braços e o calor do meu corpo. Ouvi o trotar de cavalos se aproximando e vozes que soavam numa língua incompreensível. Depois a conversa numa língua familiar, indígena. Corri em direção aquele marco de madeira fincado no chão, a única coisa que conseguia enxergar naquele negrume, já que a luz da lua que banhou o campo por um instante, desaparecera. O medo foi tomando corpo de meu corpo, pernas bambas. Quanto mais corria, sôfrego, maior era a aflição, mais forte prenunciava o cavalgar daqueles cavalheiros da noite, que, agora, se dirigiam em minha direção, gritando por terem me avistado, por perceberem minhas passadas loucas campo-a-fora.
E como cega era à noite. E como cego ficaram os meus olhos, que os fechei. Fuga treslouca pela escuridão daquele verde. Ainda tive tempo de olhar para trás e ver apenas as patas dos cavalos se chocando a água de um banhado. Corri, corri, corri até avistar e ver para além de um túnel de árvores que se formava a minha frente e, mais adiante, a luz aumentava na medida que se aproximava o fim do arco verde.

Felicidade foi aquela, quando avistei uma rua iluminada por um poste e pude num tino, para fugir do medo, esconder-me na beirada de um muro de pedra, ao lado de uma casa velha. Acariciei a cabeça do meu pequeno amigo, buscando alento em seus pêlos e procurando acalmá-lo. Eram dois, os cavalheiros. Não vi seus rostos com nitidez, porém, procedia minha intuição quanto ao linguajar: eram tapes. Identifiquei-os pelo cabelo negro, liso, cortado em formato de U invertido, a tez encarvoada para a guerra e, presos a uma fita de couro fina e transada de três na testa de um, transada de cinco noutro. Conhecia-os também pela forma em que se portavam sobre suas montarias, com as lanças compridas e pontiagudas de pedra falquejada. As boleadeiras presas à mão que seguravam as rédeas. Resmungaram algo, como se assentissem a perda da presa que procuravam. Mas afinal, era eu que eles queriam ou ao “cão fujão”? - Nenhum dos dois! Entrementes, ali, com a luz do luar que voltava a iluminar tudo, de soslaio, levantando a cabeça com cuidado para não entregar minha posição, vislumbrei uma cena sombria.

Os índios recolhiam o corpo de um guerreiro tombado perto de uma enorme timbaúva. Murmuraram algo, não os entendi desta vez. Amarraram aos pés tiras de couro as correias de igual feitio atadas nos cavalos e o arrastaram para dentro do túnel verde-copado-de-árvores. O medo sacolejou meu corpo e quando me dei por conta corria de novo. Depois, já me via na rua, o pavor ainda invadindo, quando sai das luzes dos postes para a escuridão dos paralelepípedos, uma luz fraca, iluminava feito holofote somente o meu corpo. De súbito, os passos eram largos e não podia delinear o horizonte, senti os pés tocarem nas pedras irregulares do calçamento, para, de repente, no chão, ver poças de sangue a meus pés. Já não tocava em pedras e sim em lâminas de aço branco, afiadas, mas não sentia dor alguma...

Saturday, December 02, 2006

D´um pensamento

Todos nós nascemos da terra e nela morreremos. Não é pregação de carola, mas no junco, seu moço, no cerne, todos, sem exceção, estão ligados ao umbigo da mãe terra. Basta ver, se me compreende, estes que aí estão, aí, chumbados as covas, um dia, um dia não foram homens e mulheres urbanos?. Veja! Até o senhor tem a feição da terra, com esse olhar e rosto trigueiro. A minha presunção é simples, modéstia observação: antes das casas que se colam como carrapicho as clinas do cavalo, todos moravam no campo, feito gado amontoado em dia de procissão; ao capão de mato, no antevir dos pingos d´água da chuva.

O esquisito é que esquecemos de onde viemos e ficamos mais ajujados com o passar do tempo, mais preocupados, tentando ou tateando a adivinhação. Será que não se demora existe o outro lado? Também não sei. É mistério, seu beriva, não tem graça de elucidar, o senhor compreende? Não cabe a nós nos desvendar o que ao homem se esconde. Deixe assim, deixe quieto. Quem sabe não hão de contar, aí, então, vai perder a graça, não é mesmo?

Mas vamos emparelhar um pouco a conversa, afinal só eu que falo e o senhor fica no cenho, no hum! ahã! Ah não, não quer falar! Então escuite de anssim, bem de ouvido ou com os olhos; o senhor pode ler os meus lábios. Falar em olhos, isso aqui mudou pouco. O que mudou mesmo foram as pessoas, porque os bichos são os mesmos e a terra foi o homem quem modificou.

Mira lá, mira acolá, ao longe. Não tê apercebe o silêncio das serranias onduladas feito corpo de mulher, serpenteando o horizonte a perder de vista, até o baixio daquela última coxilha que os olhos vêem? Pois é, é na divisa. Aquele varzedo repleto de caraguatás, de árvores centenárias, já ouviram muitos murmúrios, confissões e lamentações dos primeiros. Ou melhor, os primeiros não se sabe. Se tem conhecimento que eram índios, os que de hoje se chamam bugres. Depois vieram os mestiços; cria das índias com os padres. A coisa se cruzou como se mistura...

Friday, December 01, 2006

De volta ao mundo dos mortos vivos




Enquanto divago em pensamentos preguiçosos, contemplo esse mar cinzento de túmulos que me acompanha há exatos trinta e quatro anos e oito meses. Daqui quatro meses hei de me despedir de tudo isso, hei de arrepender-me também. Foi aqui neste misto de casa-casulo, onde durmo, respiro e faço minhas obrigações de guardião dos mortos, que passei o maior tempo da minha vida e aqui um dia, acredito, porque apesar de pobre tenho alma e toda alma merece uma morada; mesmo que tenha depositado mais carne no catre do que assentado tijolos em túmulos. Acredito que uma cova simples a de guardar meu corpo já cansado. Então, aqui permanecerei para sempre, mesmo na lembrança, em companhia de meus eternos amigos mortais e imortais.

Isso mesmo: este é meu segredo. Aprendi tudo o que sei com os mortos. Até converso com eles. Os “iniciados” como veremos adiante, ensinaram-me a compreender o mundo, onde conheci o que me foi permitido ver, sem ponderar e questionar o desconhecido, de viajar pelo mundo, sem ao menos ter tirado os olhos do céu estrelado inundando meu jardim de coroas, de arbustos daninhos que rondam os caminhos por dentre os túmulos.

Essa é a minha filosofia: a de um viajante em permanente estática; só a mente em expansão. Ah! céu límpido a banhar a noite nesses muros laterais sob a benção de um bosque de eucaliptos e areia vermelha, com a luz de um lampião numa colina, piscando ao longe, ao ser observado da janela do ônibus imaginário, nestas minhas viagens pelo mundo. Sim. Conheci todos os lugares imagináveis e ocultos. E assim, comparo isso a cada nome gravado nas lápides, seja nos nomes talhados no mármore dos mausoléus, seja nas cruzes dos sepulcros identificados à cal a beira da estrada. Meus pais, irmãos, irmãs, tios, tias, sobrinhos e sobrinhas, amigos e inimigos, estão aqui, bem aqui diante dos meus olhos, onde sentado no meu mocho vejo essa vida curta no tripé que dá forma aos seus pés; murcha como as flores nos vasos de algumas cruzes esquecidas, na guarda de minhas asas, das asas de anjos e querubins, neste que é o último refúgio do que somos e seremos nos pós-morte. Absolutamente nada, exceto pela aura que deixamos enquanto mortos vivos.

O princípio do fim

Bueno,
Aqui publicarei minhas boas e más divagações experimentais de literatura vagabunda, beatkerouac. Seja o que for que venha em forma de "diário de navegação", como um dos sentidos ultramodernos, denominado e dominado pelos blogueiros do mundo todo.
Aos amigos e curiosos fiquem a vontade: as críticas sempre são bem-vindas.
Carpe Diem.
Ray Smith.