Tuesday, December 05, 2006

Do Diário - A cegueira

A sombra negra assoma-se na parede. Vejo com perfeição o partido imperfeito três vezes maior que o tamanho de um corpo curvado, retorcido pela velhice, desfalecer na amurada do dia-a-dia. É chegado o momento, mas antes, na escuridão que insiste em cerrar meus olhos túmidos, betumados por sendas ralas que se estendem do supercílio ao cílio branco, eu, Renê de Enfant, tenho um pedido. Peço. Quero um enterro digno. De preferência semelhante às honrarias militares. Não desses comuns, onde o cortejo em linha, com fuzis reluzentes e fardas engomadas, trazem no semblante dos soldados da pátria, a tristeza de uma guerra que não acontece e estes ficam guardados nos quartéis a espera do trovejar dos fogos fictícios. Onde o esquife de cedro é conduzido em passos de esquerda-direita-volver, com o pavilhão hasteado em perpendicular ao corpo do oficial encarregado, sisudo, emudecido, ao olhar da guarda-fúnebre que aguarda a ordem de “fogo!”, enquanto, ao longe, pelos galões que trazem nos ombros, lhes reservam o direito de 24 salvas de canhão pela constelação galgada num “Sim, senhor!!!”, “Não, senhor!!!”. Eterno.

Quero que o sino do Pantheon badale 24 vezes para anunciar, não a morte de mais um cristão, mas uma nova vida que nascerá com o choro de uma criança no mesmo instante há cinco quadras dali, como para mim também o foi num dia de inverno. Mais ainda pelo soldado fiel, o pau-pra-toda-a-obra nas distintas frentes, carregadas por essa carne morta, esquelética e robótica. Aqui neste catre, o gelo já me consome que os delírios loucos, de uivos de lobo, permitem ter ainda um cadinho de tempo para o meu monólogo.

A ingenuidade me faz voltar ao tempo de criança, mesmo que depois deste opúsculo de maturidade, quando aprendo a sentir um quê entre verdade e mentira, a distinguir na inocência de criança que não sabe mentir, porque na velhice retomo o ar senil sem temer o ocaso dos anos findos. É o instante do cíclico, do fazer presente, futuro, passado. O anchio sabe mas reluta em reconhecer que apesar das novas rugas, cortes retilíneos cortando a pele de um extremo ao outro do corpo nu, a ingenuidade de criança volta nos ardores da puberdade. Assim, envelheço com meus chiliques trôpegos de aldeão-consultor - a dar conselhos -, relembrando em cada cruz deste cemitério, qual foi à alma que deu nome a lápide talhada no mármore frio que, as mãos, agora, tocam... na estrela do nascimento e na cruz da morte.

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