Wednesday, April 06, 2011

“Sete pecados residenciais”

– O convívio em residenciais do BNH literalmente inspira inúmeros pecados capitais - argüiu Seu Lengua, com o dedo em riste e olhar fixo noutros olhos faiscantes a atiçar as brasas da churrasqueira do condomínio. – Concordo - disse um. – Qual dos sete imperaria nesse hábitat? - perguntou outro, com ar de entendido. O candidato a crítico filósofo do Pombal procurou na cachola uma resposta à altura, simples, mortal, mas não a encontrou de imediato. Grudou um cigarro nos beiços, tomou uma caipirinha de vodca, coçou o bigode e saiu de órbita. Para sua sorte, quando muito, as atenções se voltaram para o assador, fazendo-se um silêncio e, depois seguido, os olhares desviaram-se ao sulco de uma gorda costela, num assentimento mais dos olhos do que qualquer outra coisa.

Mas a pergunta ainda rodopiava no ar e no oxigenado cérebro do Seu Lengua, a ponto de deixá-lo inquieto, intrigado pela façanha de terem lhe questionado. Quem ele pensa que é? E se remoía por dentro. Vejamos, por ordem cronológica: orgulho (superbia), inveja (invidia), cólera (ira), preguiça (accidia), avareza (avaritia), gula e luxúria. Depois, mais calmo e tendo superado um dos sete pecados, a ira, retomou a discussão. – Falamos de valor. Quem define o valor? Quem o mensura? - repetiu mecanicamente Seu Lengua, escondendo dos outros a célebre indagação de Rosário Fusco, em Introdução à experiência estética. As atenções, então, novamente se dirigiam a ele. – Como? - disse aquele que o havia desafiado. – A listinha (e nominou os sete pecados) teve início com os pensadores cristãos e foi melhorada no século V por João Cassiano e definitivamente passou a vigorar no final do século VI, com Gregório Magno - sentenciou Seu Lengua. – Mas e aqui, no Pombal? Tu perguntas.

Vamos lá: 1º) Orgulho: o comando do condomínio; 2º) Inveja: o meu apartamento é maior e tu não tens carro; 3º) Cólera: dos arruaceiros e falastrões do banco da síndica; 4º) Preguiça: de discutir o melhor para todos; 5º) Avareza: quando alguém compra um móvel novo e este desperta a inveja; 6º) Luxúria: exibir a roupa da moda na calçada antiderrapante e 7º) Gula: me dá aqui essa costela que eu te explico o resto...

A torre dos vigias

Nesta semana fui pego de surpresa no Pombal. Além do aumento no valor da taxa, o condominato decidiu por uma outra taxinha módica de trinta e cinco réis, com a finalidade de consertar a fiação dos interfones. Cá pra nós, herança de mais de 20 anos, e que só dá problema no condomínio – ora fala, ora fica mudo. Nada que o crítico de plantão, o Seu Juli, não tenha precavido a todos. Mas encrenca das brabas tem o Seu Zeca, o vigia do Pombal. Ele é primo em segundo grau daquele famoso vigia da construção. Mas vamos deixar pra lá, porque escolha de profissão, entre os de mesma estirpe, não é nepotismo.

Acontece o seguinte. O Seu Zeca é um homem honesto e dedicado no que faz. Porém, sofre com a concorrência de dois moradores, que localizados em pontos estratégicos no oitavo piso dos Blocos Alfa e Gama, fiscalizam cotidianamente os afazeres dos condôminos e o serviço do guarda. Depois ficam fazendo piadinhas de mau gosto. Como vivandeiras choram as fofocas, intrigas e maus afetos dos outros com outras pessoas. É uma desgraça. Esses dias, o Seu Zeca quase foi demitido por causa de uma delas. Reclamaram que ele andava desatento no horário de serviço. O coitado entra às dez horas da noite e sai as seis da matina, e que se saiba nunca deu rolo no Pombal, porque se tiver, ele resolve com o trêsoitão.

Será que essas pessoas não se dão por conta de que enquanto dormem, o Seu Zeca zela pelo sono da coletividade? O Seu Juli matou a charada como sempre. Sentado no “banquinho do duende de jardim”, ele explicava mais uma das suas teorias conspiratórias, dessa vez usou Maquiavel. – O problema, quanto ao serviço do vigia, é semelhante ao tabuleiro de xadrez. As torres comem pelas beiradas, enquanto os cavalos se movem, de tal maneira, a permitir que a rainha fique livre para a desforra. Respondi que não tinha entendido nada da sua filosofada, ao passo que ele respondeu: - Simples. Temos o mais completo e seguro serviço de inteligência e contra-informação do condomínio, melhor até que os interfones.

A pomba-gira do Pombal

O condomínio foi tomado por uma febre animalesca. Não, não é doença, nem tão pouco o que vocês estão pensando. Um em cada três condôminos têm um cachorrinho de estimação. A minha mulher não para de me incomodar. Quer porque quer um bichinho. – Benhêee. Pode ser um peixinho de aquário, uma cadelinha yorkshire (aliás, é o sonho dela). Ela foi demovida da idéia quando argumentei que, para além do apê microscópico, o chão é revestido de carpete. Como ela sofre de renite alérgica, desistiu na hora, mas continua insistindo por um “bichinho de escamas”. Os freudianos diriam que a adoção de animais de estimação é para suprir a falta de afeto, ou perante a partida de um ente querido e, tal. Não é o que pensa o Seu Zeca, o vigia do Pombal. O caso dele é curioso. Além de ser o responsável pela segurança nocturna do condomínio, o Seu Zeca tem um animalzinho em casa que casa bem com o pseudônimo do local de trabalho. O nome da pombinha, isso mesmo, chama-se Paloma. A ave é o xodó do Seu Zeca. Recebe comida na boca ou melhor no bico, fica com ciúmes de qualquer “uma” que se aprochegue dele, e é o despertador da residência: às seis horas da tarde, o Seu Zeca é acordado pela Paloma, que literalmente bica em sua orelha.

Certo dia, Seu Zeca andava preocupado. Quando chegava em casa, a Paloma era tomada por uma “histeria nas penas”. Mandou chamar um veterinário para verificar a plumagem da ave. O diagnóstico apontou para um “mimo excessivo”, termo empregado pelo médico. Sem saber o que fazer, já que os custos para o tratamento eram altos, Seu Zeca resolveu consultar o Seu Juli, o crítico filósofo do condomínio. A receita do Seu Juli era a de que o Seu Zeca deveria “liberar” a Paloma para uma terapia em grupo. – Mas como? – perguntou o vigia. – Deixe a Paloma “migrar” com as pombas da Praça da República – respondeu Seu Juli, em companhia de um dos anões que cercam a Branca de Neve no jardim da síndica. O Seu Zeca meio a contragosto aceitou a sugestão. Passada uma semana, a Paloma não aparecia para angústia do Seu Zeca. Foi quando, o Seu Juli revirando as suas coisas encontrou um apito de caçador, que imitava perfeitamente o arrulhar das pombas. Para surpresa do Seu Zeca, a Paloma surgiu se esgueirando por entre as pequenas coníferas do jardim. Porém não veio sozinha. Agora, ele não tem somente um animalzinho de estimação, mas a “Praça da República” inteira: um bando de aves invadiu o Pombal.

Insônia e linha cruzada

No prédio cor-de-ovo são poucos os condôminos a dormir o sono dos justos. O Pombal, em sua arquitetura oitentista, privilegia os apartamentos de paredes com acústica de gesso ou caixas de ovos. O silêncio, por mais que se faça necessário às 22h30, não é seguido ao pé da letra. Então, aquele trocadilho de que se trocou à noite pelo dia também vale no Pombal. Que o diga o Seu Zeca e um grupinho de incansáveis hibernadores de dia e corujas à noite.

O relógio da Igreja Luterana nem bem anuncia às 23h e, lá estão eles, seguindo em procissão pela calçada antiderrapante até a guarita do vigia, num constante vai-e-vem. Conversam. Tomam o mate a matar a sede da goela seca. De vez em quando, janelas e persianas se abrem e se fecham em tempos espaçados sincronicamente, em um prenúncio de incomodação pelo alarido das tagarelas da noite. O telefone público agora toca. O grupinho fica mudo por alguns instantes. O Seu Zeca atende: - Sim. Pois é...mas é que...não sei...vai a mer...droga...desligou! – diz Seu Zeca. - Quem era? – pergunta curioso o Seu Baio, o mais popular dos habitue daquelas horas – o primeiro a chegar e o último a sair. – A voz não me é estranha. Mas a pessoa usou a técnica do lenço – responde Seu Zeca com ar de sabichão, de detetive de filme policial. O “orelhão” chama por mais uma viva alma. – Alô! Vai dormir múmia...não posso fazer nada – grita Seu Zeca. – Ah tá! Deve ser a velha do oitocentos e pouco, controlando o perímetro urbano do Pombal – imagina Seu Baio. – Ou é trote mesmo – imagina o vigia.

Às cinco horas vem a resposta. Um Fiat Uno com o dístico da ETE estaciona no sentido oblíquo, bem na frente do orelhão. Tranqüilamente, um rapazote dirige-se para o telefone. Pára. Cumprimenta a todos. Olha o serial number do aparelho. O grupinho de hibernadores fica só observando. O Seu Zeca coça um rabo de barba. – Que droga. Era isto então! – fala o rapaz. – Era isso o quê? – pergunta Seu Zeca, desconfiado. – Linha cruzada. Fiquei a noite toda tentando achar... Não deu nem tempo do rapazote colocar o fone no gancho e todos, todos “caíram” em cima dele. O Pombal inteiro acordou mais cedo naquele dia, ou melhor naquela noite. – Pega. Sai fora. Tira a mão daí...

Pombal desalmado

Todo o santo dia é a mesma coisa. Acordo de sobressalto, com um som estridente de academia. O relógio nem bem desperta e, está lá, para quem quiser ouvir em alto e bom som, os escréches a arrulhar os meus ouvidos. Fazer o quê? É o preço que se paga por morar num desses apartamentos do BNH. Para muitos é um jeito econômico ou a economia do jeitinho. O prédio não é tão feio como aparenta ser. O estético, além da cor de ovo das paredes, tem outro aspecto arquitetônico: o contraste das janelas com o modo de ser dos moradores do Pombal.

À noitinha tenho o costume de sentar no banco decorativo do jardim da síndica. Pareço mais um duende a enfeitá-lo do que alguns transeuntes a esconder as cabeças sob as pequenas coníferas, meio no brinca nem cumprimenta de gente cansada, ao voltar do trabalho. Quase sempre encontro o Seu Juli, pacato condômino e contribuinte dos fundos do condomínio e do INAMPS, assim como eu. Entre uma tragada de cigarro e o passar da cuia de chimarrão, sempre sai alguma piadinha. Mas, com o seu Juli, não. Com ele não tem essa de ficar xeretando a vida dos outros pelas janelas, para não dizer voyerismo. Ao invés dele, prefere o banco da síndica. Pelo contrário. O Seu Juli é o maior crítico local que conheço. Lavoiser Martins, Arnaldo Sabão e Paulo Francis ficam no chinelo. Nada escapa ao olhar do atento gavião a rondar os ninhos do Pombal.

Esses dias, o Seu Juli tirou em saber, o porque dos por quês do aumento da taxa do condomínio. Enquanto alguns elaboravam teses de macroeconomia e outros sobre especulações imobiliárias, Seu Juli explicava que só podia ser coisa do famigerado sistema capitalista ou do velho, não tão velho jeitinho brasileiro de modificar de tempos em tempos o Código Civil; mudar os inúmeros incisos e pré-molares do estatuto do condomínio. – Isso, meu filho, é fazer caixa! -, disse. Tem jeito mais fácil dos proprietários reverterem cinco mil réis em benefício próprio do próprio condomínio? E não é que o Seu Juli tinha razão. Não deu três meses trocaram a calçada todinha. Até que deu uma melhorada na estética do prédio, que agora tem passarela antiderrapante.

Seu Juli deixa um substituto

Até quando Deus quiser foram às últimas palavras do crítico filósofo do condomínio, antes de levantar do banco e se despedir do seu melhor amigo, o duende verde do jardim da síndica. Não foi só Seu Juli que decidiu abandonar, depois de 20 anos, o Pombal. Naquela semana, na calada da noite, o Baio entrou no apartamento da cônjugue, ajeitou suas bugigangas e sem dar satisfação a ela e aos outeiros da noite, zarpou sem destino. A dona Branca, de cabelos louros como leite, já estava, havia meses, preparada para o golpe baixo do “coruja nocturno”. Pensava em voltar ao antigo marido, mas cabulou a idéia como má aprendiz que era nas côsas do amor, não do sexo, pois experiência não lhe faltava.
O Seu Zeca que andava meio evasivo de assunto nos últimos dias. O motivo era justamente por ter perdido os dois melhores companheiros em assuntar o cotidiano dos condôminos. O vigia tinha lá suas obrigações, claro. Mas, a chatice de varar noites sem a companhia das tagarelas não era a mesma côsa sem o Seu Juli e o Baio. A ronda noturna perdeu a graça. Ficava confinado na guarita, a escutar melodias programadas durante o dia por algum técnico de FM, que nem sabia de sua existência. Foi quando, numa noite dessas, viu uma sombra arquejada rondando as pequenas coníferas do jardim da síndica.
Meio precavido, o guarda do Pombal pegou o três oitão, imitou o andar agachado da sombra e saiu em seu encalço. Ao chegar na mureta de convergência dos Blocos Alfa e Gama, notou que não era nenhuma assombração como imaginara. Um homem de estatura mediana girou os calcanhares e o interpelou. – Que quê há seu guarda? – com um ar senil que se via nos cabelos brancos. – O senhor...hãhã – pigarreou - ...é morador do condomínio?. – Sou sim, novo, do trezentos e vinte e sete. Aliás, deixe me apresentar, seu guarda. Meu nome é Catu. – Prazer –, disse o vigia, desconfiado. – Echanté. Sou advogado de formação. Fui oficial de Justiça, fiz contabilidade e falo quatro idiomas, satisfeito. – Ah claro, sim...sim – respondeu meio sem jeito o vigia, mais por educação do que pela ficha corrida que ouvira do novo morador. Na noite seguinte, o Seu Zeca tinha bons motivos para não achar mais falta das tagarelas. Tinha um novo amigo, assim como o duende verde do jardim da síndica. A dona Branca, de lambuja, ganhou um admirador secreto.

Próprios e impróprios

O crítico filósofo do condomínio conversava sobre origens e significados de nomes aparentemente famosos de estrelas de novelas, quando o Seu Zeca, o vigia da guarita, questionou-o sobre nomes comuns. De início pairou no ar uma incerteza na cabeça do Seu Lengua, nada que não pudesse ser desdobrado pelo dicionário ambulante do Pombal. Sem perder o raciocínio e como o seu próprio nome indicava, a língua era afiada. – Zeca é hipocorístico de José, que vem do hebraico (Yoseph) e significa: aquele que acrescenta – disse. – “Hipo” o que? – indagou o vigia. – Hipocorístico é o diminutivo carinhoso de um nome. É o caso do teu, assim como Bia, que vem de Beatriz – respondeu Seu Lengua. – Ah! sim – falou o guarda, meio sem compreender o sentido daquele palavrão.
E assim, o crítico filósofo discorreu uma lista interminável de nomes: George (greco-italiano): fazendeiro; Schumacher (germânico): sapateiro; Jonas (hebraico): Yonan, pomba; Kaled (árabe): imortal; Hilário (latim): Hilarius, alegre; Márcio: masculino de Márcia (latim): que pertence a Marte; Leandro (grego-latino): homem-leão; Sérgio (latim): Sergius, o que cuida, que protege; Maurício (latim): derivado de Maurus, de pele escura, mouro; Camila (latim): Camilla, jovem criada; Juçara (tupi): que tem espinhos; Lilian (inglês): pura, inocente; Maria (hebraico): Mirian, senhora, soberana; Catarina (grego): Kátharos, puro; Cabral (português): lugar onde há cabras; Matias: abreviação de Matatias (hebraico), dom de Deus; Iansã (afro-brasileiro): deusa da tempestade e senhora dos ventos. Depois de um longo suspiro, Seu Lengua ficou estático. Acendeu um cigarro e ouviu boquiaberto o arremate do vigia do Pombal. – Em certos países, o nome é sobrenome, ou seja, Zeca seria o apelido e Silva o nome. E você me dá toda esta explicação. Hipocorístico também é apelido – concluiu, para surpresa de Seu Lengua, que pela primeira vez na vida perdera um embate dialogístico.

A revolta dos inanimados

Numa incerta manhã de inverno, o duende verde do jardim da síndica acordou extasiado pela grande movimentação que se fazia na calçada antiderrapante do Pombal. Os inquilinos haviam votado na última reunião do condominato, a revitalização das plantas, pequenas coníferas e adornos do jardim. Pensou nos amigos que faziam companhia a ele por mais de 20 anos e se não correriam risco de serem taxados de ultrapassados pela ação do tempo, por aqueles que o encaravam como uma mera figura decorativa. Agora a pouco, um dos líderes do movimento denominado de pró-renovação anárquica das belezas paisagísticas do Pombal, ajeitava os pequenos potes, com mudas de plantas exóticas da flora nativa. O duende verde notando a conspiração contra os seres inanimados do jardim, convocou todos para parlamentar sobre o perigo iminente. Reunidos na congruência do banco da síndica com o Bloco Gama, o anão Dunga, como representante da ordem suprema dos seres inanimados, subiu ao púbito e deu início ao debate, “conjecturando” sobre o que estava acontecendo. Além deles, estavam a Branca de Neve e os outros seis anões, o porquinho de gesso chamado Godzila, os sapos Rocco e Tido e, Hércules, uma estátua tridimensional admirada pelas mulheres do condomínio por sua beleza e força descomunal.
O duende verde imaginava – não tinha na sua mente oca a predileção para enunciar o fatídico -, mas como oráculo, apenas consultar seus dotes divinos a serviço de todos. – Os humanos querem nossa saída. Seremos substituídos por outros seres inanimados, mais novos e mais belos – vociferou Dunga. O duende verde pediu um aparte: - Abaixo a revitalização do jardim. Somos patrimônio histórico do Pombal. Vamos resistir. Às armas camaradas – pregou sob os aplausos e gritos de ordem. Quando os inquilinos tentavam iniciar a devastação pelas pequenas coníferas foram surpreendidos por uma avalanche de bolas de terra e de grama atiradas pelos membros da ordem suprema. As coníferas soltaram seus espinhos como lanças e flechas a ferir os moradores na calçada antiderrapante. Hércules, relembrando seus trabalhos na antiga Grécia, levantou o banco da síndica com uma das mãos, jogando-o contra a cabeça de um senhor metido a mandão no Pombal. Acabava, ali, o projeto de revitalização do jardim por parte dos comunheiros e iniciava, assim, a revolta dos seres inanimados que, depois de duas semanas, assinariam um tratado de livre arbítrio e de preservação da ordem. Os seres inanimados ganhariam novos companheiros e a Branca de Neve encontraria em Hércules seu príncipe encantado, para frustração dos sete anões e das mulheres do Pombal.

O país das maravilhas

O crítico filósofo do condomínio estava sentado no meio fio, do outro lado da rua, a olhar o elefante cor de ovo. O Pombal – murmurou pra si. Refletia sobre poder, corrupção, mentiras, intrigas e coisas do gênero. - Coisa pública – disse já cochilando, apouco, o Seu Lengua, utilizando técnicas gnósticas (gnostikós) para adentrar no sonho do duende verde do jardim da síndica. Durante o processo de transferência de energia, mais especificamente na reentrância, sua onda de vibração intracorpórea sofreu alterações sensoriais, e Seu Lengua, nada podendo fazer, entrou na toca do Coelho Feliz pela cabeça do duende verde.
Acontece que o duende verde sonhara justamente o contrário. Imaginava-se como Totó e não sentia falta de Alice, mas temia a Dama de Copas. Democracia, partilha, ética e serenidade perfaziam o seu neoplatonismo. O verdadeiro país das maravilhas, resmoneou o duende verde, na antinomia do espasmo ilusório. Seu Lengua resistiu mais um pouco, mas quando se viu estava a tomar chá com o Chapeleiro Maluco. Depois, como que despertando do transe, o duende verde corrigiu o curso do sonho. - O Chapeleiro Maluco é o Raul Seixas, sussurrou ao ouvido do Seu Lengua. Num estalar de dedos vislumbrou a solução do Brasil... continuar na berlinda, vivendo dos juros da exploração da Nova Ordem Mundial, pensou. Então, tudo ficou claro para o crítico filósofo. Agora, a sua clarividência revelava o significado do sonho e daquilo que ele lhe apresentava há tempos sem uma aparente explicação: a Dama de Copas é a conspiração em carne e osso, a serviço da Nova Ordem.

O sonho é a realização de um desejo, mesmo utópico.