O traçado português cruza em cruzes o torrão natal. Mira com teu óculo teu oráculo lá no baixio em quadras simétricas, de 100 metros a mais de pedras de basalto trinchadas a martelo e finca...
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Voltei desperto do sono-mormaço deste dia, onde a preguiça derruba qualquer índio vago, na sesta.
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Rogo aos homens de tronco guaranítico (como eu) que se espalham em vozes anazaladas, ali, à frente da Timbaúva, aproveitando à sombra o enfastiado fiambre. "É ora de despertar. Vide os de castela, os vascos... esses que aí estão assentados em sesmarias. Prometeram-nos, primeiro, a civilidade, a educação, os bons costumes à mesa, os mais sagrados tesouros em compartilho de espólios. Para quê? Para converter-nos em sacerdócios servis, escravos? Viramos o quê? Passivos pacholos em batalhas... descomunais massas de sangue a banhar coxilhas, a engraxar espadas, xerengas e lanças! Serviçais pra toda lide. Pra mim, tchêguê, me basta. Me voy a outras paragens".
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Depois e depois por gerações, entrecruzados tempos contados a invernos, fomos, a pampa, a campo a fora, primeiro, alardeados de ladrões, contrabandistas, meliantes do tempo e espaço, para, depois, reconhecidos por nossas façanhas, gauchos, de cruza, destemidos, arraigados, centauros das coxilhas orientais. Sim. Podem bradar aos quatro cantos... somos livres como nosso espírito libertário de lança e alma na mão, assombrando impérios... conquistadores da liberdade.
Monday, January 16, 2012
Wednesday, April 06, 2011
“Sete pecados residenciais”
– O convívio em residenciais do BNH literalmente inspira inúmeros pecados capitais - argüiu Seu Lengua, com o dedo em riste e olhar fixo noutros olhos faiscantes a atiçar as brasas da churrasqueira do condomínio. – Concordo - disse um. – Qual dos sete imperaria nesse hábitat? - perguntou outro, com ar de entendido. O candidato a crítico filósofo do Pombal procurou na cachola uma resposta à altura, simples, mortal, mas não a encontrou de imediato. Grudou um cigarro nos beiços, tomou uma caipirinha de vodca, coçou o bigode e saiu de órbita. Para sua sorte, quando muito, as atenções se voltaram para o assador, fazendo-se um silêncio e, depois seguido, os olhares desviaram-se ao sulco de uma gorda costela, num assentimento mais dos olhos do que qualquer outra coisa.
Mas a pergunta ainda rodopiava no ar e no oxigenado cérebro do Seu Lengua, a ponto de deixá-lo inquieto, intrigado pela façanha de terem lhe questionado. Quem ele pensa que é? E se remoía por dentro. Vejamos, por ordem cronológica: orgulho (superbia), inveja (invidia), cólera (ira), preguiça (accidia), avareza (avaritia), gula e luxúria. Depois, mais calmo e tendo superado um dos sete pecados, a ira, retomou a discussão. – Falamos de valor. Quem define o valor? Quem o mensura? - repetiu mecanicamente Seu Lengua, escondendo dos outros a célebre indagação de Rosário Fusco, em Introdução à experiência estética. As atenções, então, novamente se dirigiam a ele. – Como? - disse aquele que o havia desafiado. – A listinha (e nominou os sete pecados) teve início com os pensadores cristãos e foi melhorada no século V por João Cassiano e definitivamente passou a vigorar no final do século VI, com Gregório Magno - sentenciou Seu Lengua. – Mas e aqui, no Pombal? Tu perguntas.
Vamos lá: 1º) Orgulho: o comando do condomínio; 2º) Inveja: o meu apartamento é maior e tu não tens carro; 3º) Cólera: dos arruaceiros e falastrões do banco da síndica; 4º) Preguiça: de discutir o melhor para todos; 5º) Avareza: quando alguém compra um móvel novo e este desperta a inveja; 6º) Luxúria: exibir a roupa da moda na calçada antiderrapante e 7º) Gula: me dá aqui essa costela que eu te explico o resto...
Mas a pergunta ainda rodopiava no ar e no oxigenado cérebro do Seu Lengua, a ponto de deixá-lo inquieto, intrigado pela façanha de terem lhe questionado. Quem ele pensa que é? E se remoía por dentro. Vejamos, por ordem cronológica: orgulho (superbia), inveja (invidia), cólera (ira), preguiça (accidia), avareza (avaritia), gula e luxúria. Depois, mais calmo e tendo superado um dos sete pecados, a ira, retomou a discussão. – Falamos de valor. Quem define o valor? Quem o mensura? - repetiu mecanicamente Seu Lengua, escondendo dos outros a célebre indagação de Rosário Fusco, em Introdução à experiência estética. As atenções, então, novamente se dirigiam a ele. – Como? - disse aquele que o havia desafiado. – A listinha (e nominou os sete pecados) teve início com os pensadores cristãos e foi melhorada no século V por João Cassiano e definitivamente passou a vigorar no final do século VI, com Gregório Magno - sentenciou Seu Lengua. – Mas e aqui, no Pombal? Tu perguntas.
Vamos lá: 1º) Orgulho: o comando do condomínio; 2º) Inveja: o meu apartamento é maior e tu não tens carro; 3º) Cólera: dos arruaceiros e falastrões do banco da síndica; 4º) Preguiça: de discutir o melhor para todos; 5º) Avareza: quando alguém compra um móvel novo e este desperta a inveja; 6º) Luxúria: exibir a roupa da moda na calçada antiderrapante e 7º) Gula: me dá aqui essa costela que eu te explico o resto...
A torre dos vigias
Nesta semana fui pego de surpresa no Pombal. Além do aumento no valor da taxa, o condominato decidiu por uma outra taxinha módica de trinta e cinco réis, com a finalidade de consertar a fiação dos interfones. Cá pra nós, herança de mais de 20 anos, e que só dá problema no condomínio – ora fala, ora fica mudo. Nada que o crítico de plantão, o Seu Juli, não tenha precavido a todos. Mas encrenca das brabas tem o Seu Zeca, o vigia do Pombal. Ele é primo em segundo grau daquele famoso vigia da construção. Mas vamos deixar pra lá, porque escolha de profissão, entre os de mesma estirpe, não é nepotismo.
Acontece o seguinte. O Seu Zeca é um homem honesto e dedicado no que faz. Porém, sofre com a concorrência de dois moradores, que localizados em pontos estratégicos no oitavo piso dos Blocos Alfa e Gama, fiscalizam cotidianamente os afazeres dos condôminos e o serviço do guarda. Depois ficam fazendo piadinhas de mau gosto. Como vivandeiras choram as fofocas, intrigas e maus afetos dos outros com outras pessoas. É uma desgraça. Esses dias, o Seu Zeca quase foi demitido por causa de uma delas. Reclamaram que ele andava desatento no horário de serviço. O coitado entra às dez horas da noite e sai as seis da matina, e que se saiba nunca deu rolo no Pombal, porque se tiver, ele resolve com o trêsoitão.
Será que essas pessoas não se dão por conta de que enquanto dormem, o Seu Zeca zela pelo sono da coletividade? O Seu Juli matou a charada como sempre. Sentado no “banquinho do duende de jardim”, ele explicava mais uma das suas teorias conspiratórias, dessa vez usou Maquiavel. – O problema, quanto ao serviço do vigia, é semelhante ao tabuleiro de xadrez. As torres comem pelas beiradas, enquanto os cavalos se movem, de tal maneira, a permitir que a rainha fique livre para a desforra. Respondi que não tinha entendido nada da sua filosofada, ao passo que ele respondeu: - Simples. Temos o mais completo e seguro serviço de inteligência e contra-informação do condomínio, melhor até que os interfones.
Acontece o seguinte. O Seu Zeca é um homem honesto e dedicado no que faz. Porém, sofre com a concorrência de dois moradores, que localizados em pontos estratégicos no oitavo piso dos Blocos Alfa e Gama, fiscalizam cotidianamente os afazeres dos condôminos e o serviço do guarda. Depois ficam fazendo piadinhas de mau gosto. Como vivandeiras choram as fofocas, intrigas e maus afetos dos outros com outras pessoas. É uma desgraça. Esses dias, o Seu Zeca quase foi demitido por causa de uma delas. Reclamaram que ele andava desatento no horário de serviço. O coitado entra às dez horas da noite e sai as seis da matina, e que se saiba nunca deu rolo no Pombal, porque se tiver, ele resolve com o trêsoitão.
Será que essas pessoas não se dão por conta de que enquanto dormem, o Seu Zeca zela pelo sono da coletividade? O Seu Juli matou a charada como sempre. Sentado no “banquinho do duende de jardim”, ele explicava mais uma das suas teorias conspiratórias, dessa vez usou Maquiavel. – O problema, quanto ao serviço do vigia, é semelhante ao tabuleiro de xadrez. As torres comem pelas beiradas, enquanto os cavalos se movem, de tal maneira, a permitir que a rainha fique livre para a desforra. Respondi que não tinha entendido nada da sua filosofada, ao passo que ele respondeu: - Simples. Temos o mais completo e seguro serviço de inteligência e contra-informação do condomínio, melhor até que os interfones.
A pomba-gira do Pombal
O condomínio foi tomado por uma febre animalesca. Não, não é doença, nem tão pouco o que vocês estão pensando. Um em cada três condôminos têm um cachorrinho de estimação. A minha mulher não para de me incomodar. Quer porque quer um bichinho. – Benhêee. Pode ser um peixinho de aquário, uma cadelinha yorkshire (aliás, é o sonho dela). Ela foi demovida da idéia quando argumentei que, para além do apê microscópico, o chão é revestido de carpete. Como ela sofre de renite alérgica, desistiu na hora, mas continua insistindo por um “bichinho de escamas”. Os freudianos diriam que a adoção de animais de estimação é para suprir a falta de afeto, ou perante a partida de um ente querido e, tal. Não é o que pensa o Seu Zeca, o vigia do Pombal. O caso dele é curioso. Além de ser o responsável pela segurança nocturna do condomínio, o Seu Zeca tem um animalzinho em casa que casa bem com o pseudônimo do local de trabalho. O nome da pombinha, isso mesmo, chama-se Paloma. A ave é o xodó do Seu Zeca. Recebe comida na boca ou melhor no bico, fica com ciúmes de qualquer “uma” que se aprochegue dele, e é o despertador da residência: às seis horas da tarde, o Seu Zeca é acordado pela Paloma, que literalmente bica em sua orelha.
Certo dia, Seu Zeca andava preocupado. Quando chegava em casa, a Paloma era tomada por uma “histeria nas penas”. Mandou chamar um veterinário para verificar a plumagem da ave. O diagnóstico apontou para um “mimo excessivo”, termo empregado pelo médico. Sem saber o que fazer, já que os custos para o tratamento eram altos, Seu Zeca resolveu consultar o Seu Juli, o crítico filósofo do condomínio. A receita do Seu Juli era a de que o Seu Zeca deveria “liberar” a Paloma para uma terapia em grupo. – Mas como? – perguntou o vigia. – Deixe a Paloma “migrar” com as pombas da Praça da República – respondeu Seu Juli, em companhia de um dos anões que cercam a Branca de Neve no jardim da síndica. O Seu Zeca meio a contragosto aceitou a sugestão. Passada uma semana, a Paloma não aparecia para angústia do Seu Zeca. Foi quando, o Seu Juli revirando as suas coisas encontrou um apito de caçador, que imitava perfeitamente o arrulhar das pombas. Para surpresa do Seu Zeca, a Paloma surgiu se esgueirando por entre as pequenas coníferas do jardim. Porém não veio sozinha. Agora, ele não tem somente um animalzinho de estimação, mas a “Praça da República” inteira: um bando de aves invadiu o Pombal.
Certo dia, Seu Zeca andava preocupado. Quando chegava em casa, a Paloma era tomada por uma “histeria nas penas”. Mandou chamar um veterinário para verificar a plumagem da ave. O diagnóstico apontou para um “mimo excessivo”, termo empregado pelo médico. Sem saber o que fazer, já que os custos para o tratamento eram altos, Seu Zeca resolveu consultar o Seu Juli, o crítico filósofo do condomínio. A receita do Seu Juli era a de que o Seu Zeca deveria “liberar” a Paloma para uma terapia em grupo. – Mas como? – perguntou o vigia. – Deixe a Paloma “migrar” com as pombas da Praça da República – respondeu Seu Juli, em companhia de um dos anões que cercam a Branca de Neve no jardim da síndica. O Seu Zeca meio a contragosto aceitou a sugestão. Passada uma semana, a Paloma não aparecia para angústia do Seu Zeca. Foi quando, o Seu Juli revirando as suas coisas encontrou um apito de caçador, que imitava perfeitamente o arrulhar das pombas. Para surpresa do Seu Zeca, a Paloma surgiu se esgueirando por entre as pequenas coníferas do jardim. Porém não veio sozinha. Agora, ele não tem somente um animalzinho de estimação, mas a “Praça da República” inteira: um bando de aves invadiu o Pombal.
Insônia e linha cruzada
No prédio cor-de-ovo são poucos os condôminos a dormir o sono dos justos. O Pombal, em sua arquitetura oitentista, privilegia os apartamentos de paredes com acústica de gesso ou caixas de ovos. O silêncio, por mais que se faça necessário às 22h30, não é seguido ao pé da letra. Então, aquele trocadilho de que se trocou à noite pelo dia também vale no Pombal. Que o diga o Seu Zeca e um grupinho de incansáveis hibernadores de dia e corujas à noite.
O relógio da Igreja Luterana nem bem anuncia às 23h e, lá estão eles, seguindo em procissão pela calçada antiderrapante até a guarita do vigia, num constante vai-e-vem. Conversam. Tomam o mate a matar a sede da goela seca. De vez em quando, janelas e persianas se abrem e se fecham em tempos espaçados sincronicamente, em um prenúncio de incomodação pelo alarido das tagarelas da noite. O telefone público agora toca. O grupinho fica mudo por alguns instantes. O Seu Zeca atende: - Sim. Pois é...mas é que...não sei...vai a mer...droga...desligou! – diz Seu Zeca. - Quem era? – pergunta curioso o Seu Baio, o mais popular dos habitue daquelas horas – o primeiro a chegar e o último a sair. – A voz não me é estranha. Mas a pessoa usou a técnica do lenço – responde Seu Zeca com ar de sabichão, de detetive de filme policial. O “orelhão” chama por mais uma viva alma. – Alô! Vai dormir múmia...não posso fazer nada – grita Seu Zeca. – Ah tá! Deve ser a velha do oitocentos e pouco, controlando o perímetro urbano do Pombal – imagina Seu Baio. – Ou é trote mesmo – imagina o vigia.
Às cinco horas vem a resposta. Um Fiat Uno com o dístico da ETE estaciona no sentido oblíquo, bem na frente do orelhão. Tranqüilamente, um rapazote dirige-se para o telefone. Pára. Cumprimenta a todos. Olha o serial number do aparelho. O grupinho de hibernadores fica só observando. O Seu Zeca coça um rabo de barba. – Que droga. Era isto então! – fala o rapaz. – Era isso o quê? – pergunta Seu Zeca, desconfiado. – Linha cruzada. Fiquei a noite toda tentando achar... Não deu nem tempo do rapazote colocar o fone no gancho e todos, todos “caíram” em cima dele. O Pombal inteiro acordou mais cedo naquele dia, ou melhor naquela noite. – Pega. Sai fora. Tira a mão daí...
O relógio da Igreja Luterana nem bem anuncia às 23h e, lá estão eles, seguindo em procissão pela calçada antiderrapante até a guarita do vigia, num constante vai-e-vem. Conversam. Tomam o mate a matar a sede da goela seca. De vez em quando, janelas e persianas se abrem e se fecham em tempos espaçados sincronicamente, em um prenúncio de incomodação pelo alarido das tagarelas da noite. O telefone público agora toca. O grupinho fica mudo por alguns instantes. O Seu Zeca atende: - Sim. Pois é...mas é que...não sei...vai a mer...droga...desligou! – diz Seu Zeca. - Quem era? – pergunta curioso o Seu Baio, o mais popular dos habitue daquelas horas – o primeiro a chegar e o último a sair. – A voz não me é estranha. Mas a pessoa usou a técnica do lenço – responde Seu Zeca com ar de sabichão, de detetive de filme policial. O “orelhão” chama por mais uma viva alma. – Alô! Vai dormir múmia...não posso fazer nada – grita Seu Zeca. – Ah tá! Deve ser a velha do oitocentos e pouco, controlando o perímetro urbano do Pombal – imagina Seu Baio. – Ou é trote mesmo – imagina o vigia.
Às cinco horas vem a resposta. Um Fiat Uno com o dístico da ETE estaciona no sentido oblíquo, bem na frente do orelhão. Tranqüilamente, um rapazote dirige-se para o telefone. Pára. Cumprimenta a todos. Olha o serial number do aparelho. O grupinho de hibernadores fica só observando. O Seu Zeca coça um rabo de barba. – Que droga. Era isto então! – fala o rapaz. – Era isso o quê? – pergunta Seu Zeca, desconfiado. – Linha cruzada. Fiquei a noite toda tentando achar... Não deu nem tempo do rapazote colocar o fone no gancho e todos, todos “caíram” em cima dele. O Pombal inteiro acordou mais cedo naquele dia, ou melhor naquela noite. – Pega. Sai fora. Tira a mão daí...
Pombal desalmado
Todo o santo dia é a mesma coisa. Acordo de sobressalto, com um som estridente de academia. O relógio nem bem desperta e, está lá, para quem quiser ouvir em alto e bom som, os escréches a arrulhar os meus ouvidos. Fazer o quê? É o preço que se paga por morar num desses apartamentos do BNH. Para muitos é um jeito econômico ou a economia do jeitinho. O prédio não é tão feio como aparenta ser. O estético, além da cor de ovo das paredes, tem outro aspecto arquitetônico: o contraste das janelas com o modo de ser dos moradores do Pombal.
À noitinha tenho o costume de sentar no banco decorativo do jardim da síndica. Pareço mais um duende a enfeitá-lo do que alguns transeuntes a esconder as cabeças sob as pequenas coníferas, meio no brinca nem cumprimenta de gente cansada, ao voltar do trabalho. Quase sempre encontro o Seu Juli, pacato condômino e contribuinte dos fundos do condomínio e do INAMPS, assim como eu. Entre uma tragada de cigarro e o passar da cuia de chimarrão, sempre sai alguma piadinha. Mas, com o seu Juli, não. Com ele não tem essa de ficar xeretando a vida dos outros pelas janelas, para não dizer voyerismo. Ao invés dele, prefere o banco da síndica. Pelo contrário. O Seu Juli é o maior crítico local que conheço. Lavoiser Martins, Arnaldo Sabão e Paulo Francis ficam no chinelo. Nada escapa ao olhar do atento gavião a rondar os ninhos do Pombal.
Esses dias, o Seu Juli tirou em saber, o porque dos por quês do aumento da taxa do condomínio. Enquanto alguns elaboravam teses de macroeconomia e outros sobre especulações imobiliárias, Seu Juli explicava que só podia ser coisa do famigerado sistema capitalista ou do velho, não tão velho jeitinho brasileiro de modificar de tempos em tempos o Código Civil; mudar os inúmeros incisos e pré-molares do estatuto do condomínio. – Isso, meu filho, é fazer caixa! -, disse. Tem jeito mais fácil dos proprietários reverterem cinco mil réis em benefício próprio do próprio condomínio? E não é que o Seu Juli tinha razão. Não deu três meses trocaram a calçada todinha. Até que deu uma melhorada na estética do prédio, que agora tem passarela antiderrapante.
À noitinha tenho o costume de sentar no banco decorativo do jardim da síndica. Pareço mais um duende a enfeitá-lo do que alguns transeuntes a esconder as cabeças sob as pequenas coníferas, meio no brinca nem cumprimenta de gente cansada, ao voltar do trabalho. Quase sempre encontro o Seu Juli, pacato condômino e contribuinte dos fundos do condomínio e do INAMPS, assim como eu. Entre uma tragada de cigarro e o passar da cuia de chimarrão, sempre sai alguma piadinha. Mas, com o seu Juli, não. Com ele não tem essa de ficar xeretando a vida dos outros pelas janelas, para não dizer voyerismo. Ao invés dele, prefere o banco da síndica. Pelo contrário. O Seu Juli é o maior crítico local que conheço. Lavoiser Martins, Arnaldo Sabão e Paulo Francis ficam no chinelo. Nada escapa ao olhar do atento gavião a rondar os ninhos do Pombal.
Esses dias, o Seu Juli tirou em saber, o porque dos por quês do aumento da taxa do condomínio. Enquanto alguns elaboravam teses de macroeconomia e outros sobre especulações imobiliárias, Seu Juli explicava que só podia ser coisa do famigerado sistema capitalista ou do velho, não tão velho jeitinho brasileiro de modificar de tempos em tempos o Código Civil; mudar os inúmeros incisos e pré-molares do estatuto do condomínio. – Isso, meu filho, é fazer caixa! -, disse. Tem jeito mais fácil dos proprietários reverterem cinco mil réis em benefício próprio do próprio condomínio? E não é que o Seu Juli tinha razão. Não deu três meses trocaram a calçada todinha. Até que deu uma melhorada na estética do prédio, que agora tem passarela antiderrapante.
Seu Juli deixa um substituto
Até quando Deus quiser foram às últimas palavras do crítico filósofo do condomínio, antes de levantar do banco e se despedir do seu melhor amigo, o duende verde do jardim da síndica. Não foi só Seu Juli que decidiu abandonar, depois de 20 anos, o Pombal. Naquela semana, na calada da noite, o Baio entrou no apartamento da cônjugue, ajeitou suas bugigangas e sem dar satisfação a ela e aos outeiros da noite, zarpou sem destino. A dona Branca, de cabelos louros como leite, já estava, havia meses, preparada para o golpe baixo do “coruja nocturno”. Pensava em voltar ao antigo marido, mas cabulou a idéia como má aprendiz que era nas côsas do amor, não do sexo, pois experiência não lhe faltava.
O Seu Zeca que andava meio evasivo de assunto nos últimos dias. O motivo era justamente por ter perdido os dois melhores companheiros em assuntar o cotidiano dos condôminos. O vigia tinha lá suas obrigações, claro. Mas, a chatice de varar noites sem a companhia das tagarelas não era a mesma côsa sem o Seu Juli e o Baio. A ronda noturna perdeu a graça. Ficava confinado na guarita, a escutar melodias programadas durante o dia por algum técnico de FM, que nem sabia de sua existência. Foi quando, numa noite dessas, viu uma sombra arquejada rondando as pequenas coníferas do jardim da síndica.
Meio precavido, o guarda do Pombal pegou o três oitão, imitou o andar agachado da sombra e saiu em seu encalço. Ao chegar na mureta de convergência dos Blocos Alfa e Gama, notou que não era nenhuma assombração como imaginara. Um homem de estatura mediana girou os calcanhares e o interpelou. – Que quê há seu guarda? – com um ar senil que se via nos cabelos brancos. – O senhor...hãhã – pigarreou - ...é morador do condomínio?. – Sou sim, novo, do trezentos e vinte e sete. Aliás, deixe me apresentar, seu guarda. Meu nome é Catu. – Prazer –, disse o vigia, desconfiado. – Echanté. Sou advogado de formação. Fui oficial de Justiça, fiz contabilidade e falo quatro idiomas, satisfeito. – Ah claro, sim...sim – respondeu meio sem jeito o vigia, mais por educação do que pela ficha corrida que ouvira do novo morador. Na noite seguinte, o Seu Zeca tinha bons motivos para não achar mais falta das tagarelas. Tinha um novo amigo, assim como o duende verde do jardim da síndica. A dona Branca, de lambuja, ganhou um admirador secreto.
O Seu Zeca que andava meio evasivo de assunto nos últimos dias. O motivo era justamente por ter perdido os dois melhores companheiros em assuntar o cotidiano dos condôminos. O vigia tinha lá suas obrigações, claro. Mas, a chatice de varar noites sem a companhia das tagarelas não era a mesma côsa sem o Seu Juli e o Baio. A ronda noturna perdeu a graça. Ficava confinado na guarita, a escutar melodias programadas durante o dia por algum técnico de FM, que nem sabia de sua existência. Foi quando, numa noite dessas, viu uma sombra arquejada rondando as pequenas coníferas do jardim da síndica.
Meio precavido, o guarda do Pombal pegou o três oitão, imitou o andar agachado da sombra e saiu em seu encalço. Ao chegar na mureta de convergência dos Blocos Alfa e Gama, notou que não era nenhuma assombração como imaginara. Um homem de estatura mediana girou os calcanhares e o interpelou. – Que quê há seu guarda? – com um ar senil que se via nos cabelos brancos. – O senhor...hãhã – pigarreou - ...é morador do condomínio?. – Sou sim, novo, do trezentos e vinte e sete. Aliás, deixe me apresentar, seu guarda. Meu nome é Catu. – Prazer –, disse o vigia, desconfiado. – Echanté. Sou advogado de formação. Fui oficial de Justiça, fiz contabilidade e falo quatro idiomas, satisfeito. – Ah claro, sim...sim – respondeu meio sem jeito o vigia, mais por educação do que pela ficha corrida que ouvira do novo morador. Na noite seguinte, o Seu Zeca tinha bons motivos para não achar mais falta das tagarelas. Tinha um novo amigo, assim como o duende verde do jardim da síndica. A dona Branca, de lambuja, ganhou um admirador secreto.
Próprios e impróprios
O crítico filósofo do condomínio conversava sobre origens e significados de nomes aparentemente famosos de estrelas de novelas, quando o Seu Zeca, o vigia da guarita, questionou-o sobre nomes comuns. De início pairou no ar uma incerteza na cabeça do Seu Lengua, nada que não pudesse ser desdobrado pelo dicionário ambulante do Pombal. Sem perder o raciocínio e como o seu próprio nome indicava, a língua era afiada. – Zeca é hipocorístico de José, que vem do hebraico (Yoseph) e significa: aquele que acrescenta – disse. – “Hipo” o que? – indagou o vigia. – Hipocorístico é o diminutivo carinhoso de um nome. É o caso do teu, assim como Bia, que vem de Beatriz – respondeu Seu Lengua. – Ah! sim – falou o guarda, meio sem compreender o sentido daquele palavrão.
E assim, o crítico filósofo discorreu uma lista interminável de nomes: George (greco-italiano): fazendeiro; Schumacher (germânico): sapateiro; Jonas (hebraico): Yonan, pomba; Kaled (árabe): imortal; Hilário (latim): Hilarius, alegre; Márcio: masculino de Márcia (latim): que pertence a Marte; Leandro (grego-latino): homem-leão; Sérgio (latim): Sergius, o que cuida, que protege; Maurício (latim): derivado de Maurus, de pele escura, mouro; Camila (latim): Camilla, jovem criada; Juçara (tupi): que tem espinhos; Lilian (inglês): pura, inocente; Maria (hebraico): Mirian, senhora, soberana; Catarina (grego): Kátharos, puro; Cabral (português): lugar onde há cabras; Matias: abreviação de Matatias (hebraico), dom de Deus; Iansã (afro-brasileiro): deusa da tempestade e senhora dos ventos. Depois de um longo suspiro, Seu Lengua ficou estático. Acendeu um cigarro e ouviu boquiaberto o arremate do vigia do Pombal. – Em certos países, o nome é sobrenome, ou seja, Zeca seria o apelido e Silva o nome. E você me dá toda esta explicação. Hipocorístico também é apelido – concluiu, para surpresa de Seu Lengua, que pela primeira vez na vida perdera um embate dialogístico.
E assim, o crítico filósofo discorreu uma lista interminável de nomes: George (greco-italiano): fazendeiro; Schumacher (germânico): sapateiro; Jonas (hebraico): Yonan, pomba; Kaled (árabe): imortal; Hilário (latim): Hilarius, alegre; Márcio: masculino de Márcia (latim): que pertence a Marte; Leandro (grego-latino): homem-leão; Sérgio (latim): Sergius, o que cuida, que protege; Maurício (latim): derivado de Maurus, de pele escura, mouro; Camila (latim): Camilla, jovem criada; Juçara (tupi): que tem espinhos; Lilian (inglês): pura, inocente; Maria (hebraico): Mirian, senhora, soberana; Catarina (grego): Kátharos, puro; Cabral (português): lugar onde há cabras; Matias: abreviação de Matatias (hebraico), dom de Deus; Iansã (afro-brasileiro): deusa da tempestade e senhora dos ventos. Depois de um longo suspiro, Seu Lengua ficou estático. Acendeu um cigarro e ouviu boquiaberto o arremate do vigia do Pombal. – Em certos países, o nome é sobrenome, ou seja, Zeca seria o apelido e Silva o nome. E você me dá toda esta explicação. Hipocorístico também é apelido – concluiu, para surpresa de Seu Lengua, que pela primeira vez na vida perdera um embate dialogístico.
A revolta dos inanimados
Numa incerta manhã de inverno, o duende verde do jardim da síndica acordou extasiado pela grande movimentação que se fazia na calçada antiderrapante do Pombal. Os inquilinos haviam votado na última reunião do condominato, a revitalização das plantas, pequenas coníferas e adornos do jardim. Pensou nos amigos que faziam companhia a ele por mais de 20 anos e se não correriam risco de serem taxados de ultrapassados pela ação do tempo, por aqueles que o encaravam como uma mera figura decorativa. Agora a pouco, um dos líderes do movimento denominado de pró-renovação anárquica das belezas paisagísticas do Pombal, ajeitava os pequenos potes, com mudas de plantas exóticas da flora nativa. O duende verde notando a conspiração contra os seres inanimados do jardim, convocou todos para parlamentar sobre o perigo iminente. Reunidos na congruência do banco da síndica com o Bloco Gama, o anão Dunga, como representante da ordem suprema dos seres inanimados, subiu ao púbito e deu início ao debate, “conjecturando” sobre o que estava acontecendo. Além deles, estavam a Branca de Neve e os outros seis anões, o porquinho de gesso chamado Godzila, os sapos Rocco e Tido e, Hércules, uma estátua tridimensional admirada pelas mulheres do condomínio por sua beleza e força descomunal.
O duende verde imaginava – não tinha na sua mente oca a predileção para enunciar o fatídico -, mas como oráculo, apenas consultar seus dotes divinos a serviço de todos. – Os humanos querem nossa saída. Seremos substituídos por outros seres inanimados, mais novos e mais belos – vociferou Dunga. O duende verde pediu um aparte: - Abaixo a revitalização do jardim. Somos patrimônio histórico do Pombal. Vamos resistir. Às armas camaradas – pregou sob os aplausos e gritos de ordem. Quando os inquilinos tentavam iniciar a devastação pelas pequenas coníferas foram surpreendidos por uma avalanche de bolas de terra e de grama atiradas pelos membros da ordem suprema. As coníferas soltaram seus espinhos como lanças e flechas a ferir os moradores na calçada antiderrapante. Hércules, relembrando seus trabalhos na antiga Grécia, levantou o banco da síndica com uma das mãos, jogando-o contra a cabeça de um senhor metido a mandão no Pombal. Acabava, ali, o projeto de revitalização do jardim por parte dos comunheiros e iniciava, assim, a revolta dos seres inanimados que, depois de duas semanas, assinariam um tratado de livre arbítrio e de preservação da ordem. Os seres inanimados ganhariam novos companheiros e a Branca de Neve encontraria em Hércules seu príncipe encantado, para frustração dos sete anões e das mulheres do Pombal.
O duende verde imaginava – não tinha na sua mente oca a predileção para enunciar o fatídico -, mas como oráculo, apenas consultar seus dotes divinos a serviço de todos. – Os humanos querem nossa saída. Seremos substituídos por outros seres inanimados, mais novos e mais belos – vociferou Dunga. O duende verde pediu um aparte: - Abaixo a revitalização do jardim. Somos patrimônio histórico do Pombal. Vamos resistir. Às armas camaradas – pregou sob os aplausos e gritos de ordem. Quando os inquilinos tentavam iniciar a devastação pelas pequenas coníferas foram surpreendidos por uma avalanche de bolas de terra e de grama atiradas pelos membros da ordem suprema. As coníferas soltaram seus espinhos como lanças e flechas a ferir os moradores na calçada antiderrapante. Hércules, relembrando seus trabalhos na antiga Grécia, levantou o banco da síndica com uma das mãos, jogando-o contra a cabeça de um senhor metido a mandão no Pombal. Acabava, ali, o projeto de revitalização do jardim por parte dos comunheiros e iniciava, assim, a revolta dos seres inanimados que, depois de duas semanas, assinariam um tratado de livre arbítrio e de preservação da ordem. Os seres inanimados ganhariam novos companheiros e a Branca de Neve encontraria em Hércules seu príncipe encantado, para frustração dos sete anões e das mulheres do Pombal.
O país das maravilhas
O crítico filósofo do condomínio estava sentado no meio fio, do outro lado da rua, a olhar o elefante cor de ovo. O Pombal – murmurou pra si. Refletia sobre poder, corrupção, mentiras, intrigas e coisas do gênero. - Coisa pública – disse já cochilando, apouco, o Seu Lengua, utilizando técnicas gnósticas (gnostikós) para adentrar no sonho do duende verde do jardim da síndica. Durante o processo de transferência de energia, mais especificamente na reentrância, sua onda de vibração intracorpórea sofreu alterações sensoriais, e Seu Lengua, nada podendo fazer, entrou na toca do Coelho Feliz pela cabeça do duende verde.
Acontece que o duende verde sonhara justamente o contrário. Imaginava-se como Totó e não sentia falta de Alice, mas temia a Dama de Copas. Democracia, partilha, ética e serenidade perfaziam o seu neoplatonismo. O verdadeiro país das maravilhas, resmoneou o duende verde, na antinomia do espasmo ilusório. Seu Lengua resistiu mais um pouco, mas quando se viu estava a tomar chá com o Chapeleiro Maluco. Depois, como que despertando do transe, o duende verde corrigiu o curso do sonho. - O Chapeleiro Maluco é o Raul Seixas, sussurrou ao ouvido do Seu Lengua. Num estalar de dedos vislumbrou a solução do Brasil... continuar na berlinda, vivendo dos juros da exploração da Nova Ordem Mundial, pensou. Então, tudo ficou claro para o crítico filósofo. Agora, a sua clarividência revelava o significado do sonho e daquilo que ele lhe apresentava há tempos sem uma aparente explicação: a Dama de Copas é a conspiração em carne e osso, a serviço da Nova Ordem.
O sonho é a realização de um desejo, mesmo utópico.
Acontece que o duende verde sonhara justamente o contrário. Imaginava-se como Totó e não sentia falta de Alice, mas temia a Dama de Copas. Democracia, partilha, ética e serenidade perfaziam o seu neoplatonismo. O verdadeiro país das maravilhas, resmoneou o duende verde, na antinomia do espasmo ilusório. Seu Lengua resistiu mais um pouco, mas quando se viu estava a tomar chá com o Chapeleiro Maluco. Depois, como que despertando do transe, o duende verde corrigiu o curso do sonho. - O Chapeleiro Maluco é o Raul Seixas, sussurrou ao ouvido do Seu Lengua. Num estalar de dedos vislumbrou a solução do Brasil... continuar na berlinda, vivendo dos juros da exploração da Nova Ordem Mundial, pensou. Então, tudo ficou claro para o crítico filósofo. Agora, a sua clarividência revelava o significado do sonho e daquilo que ele lhe apresentava há tempos sem uma aparente explicação: a Dama de Copas é a conspiração em carne e osso, a serviço da Nova Ordem.
O sonho é a realização de um desejo, mesmo utópico.
Monday, February 08, 2010
O carão uruguayo à brasileña
*Baseado em fatos reais – Montevidéu, janeiro de 2010
A mente anda vazia como meus passos a procura de sentido e lugar comum, aonde possa penetrar em outras mentes adormecidas revolucionariamente nas conversas de botecos afins. À mesa encaro o líquido espumante de uma cerveja com colarinho na medida certa. O silêncio emudece a mim e a minha companheira, só por detalhe do momento, em observar o comportamento de outras almas. Os simpáticos garçons num vai-e-vem frenético tentam saciar a sede e os pedidos de algures estrangeiros: apalavraedos em língua comum, se misturam ao rústico bretão.
Ao ar livre, a música criola toma conta de corpos vibrantes na “Plaza del Entrevero”, feito palco improvisado defronte ao enorme monumento em homenagem aos bravos gauchos uruguayos que pelejaram por la República Oriental. E, os centauros – cavalos e gauchos unidos num só corpo -, dão a dramaticidade da ocasião aos bailarinos. Se refestelam com os despojos do inimigo após uma batalha. São homens e mulheres embriagados pelo calor da noite e dos corpos que transcendem, mantendo a identidade incompreensível (ao olhar dos de fora dos trópicos): “como podem ser tão desinibidos?", devem estar a se perguntar os de língua presa.
Enquanto o trago nas mesas sob o mesanino expõem diferenças de classes e caras desconfiadas, a canha em garrafas pets passam de mão-em-mão entre os dançarinos. Sorrisos, miras em ojos rojos y lábios partidos, a cantarolarem os estribilhos da canção dançante. Esses, homens e mulheres em local público que, se faz a casa de tantos na América Latina, seguem os passos e esqueçem as mentes porque a revolução já foi vencida há muito tempo à fuzil e a baioneta. Mesmo.
Como somos felizes, como somos tão iguais e diferentes ao mesmo tempo, mas as diferenças terminam aí. Até mesmo para os de arriba, aqui, na Plaza Fabian, nos parecemos diferentes e somos iguais aos de baixo da linha divisória imaginária, que tanto nos degladiamos por um fim próximo. O por que de tanto ódio? Colonialismo barato. Aculturação que tenta apagar o apagável, pois da memória se apaga o que se quer e se guarda o que não se quer. “Gracias pela lembrança, hermano Luiz!”.
Dois casais conversam freneticamente sobre a Banda Oriental e seus atrativos turísticos. Playa de Pocitos. Ramplas. Mar del Plata. Punta Gorda. Maldonado. Puntas: Ballenas, del Diablo, Leste, dos argentos. Colônia. Sacramento. Ciudad Vieja. Uma hermosa senhorita brasileña se sacode ao embalo da sonoridade gritante da mistura do batuque do candomblê com a voz de veludo da cantora. Pois bem. Um homem com traço hispano-charrua se aproxima da mesa, a minha frente, onde a língua me é familiar. Os gestos, educados da mão à saudação romântica, lhe convidam a bailar. A negativa vêm em sorrisos que desfiguram a face em tom sério. O homem agradece e se retira sem perder a compustura. M-a-l-e-d-u-c-a-d-a. “Sí. Se baila pero no me gusta... me gusta bailar sólo”. Y sólo.
A retribuição do carão vem de acaballo e no corar do rosto da mocita brasileña. O hispano-charrua mira um perro que bailava por entre as pernas dos bailarinos. Não pensa duas vezes. Sem convite e sem carão, segura as patas do cachorro e lhe saca a dançar. Os risos tomam conta da plateia e, a mulher, mais do que corada, agora se envergonha... o pior narcisista de todos é aquele que não se enxerga no espelho.
A mente anda vazia como meus passos a procura de sentido e lugar comum, aonde possa penetrar em outras mentes adormecidas revolucionariamente nas conversas de botecos afins. À mesa encaro o líquido espumante de uma cerveja com colarinho na medida certa. O silêncio emudece a mim e a minha companheira, só por detalhe do momento, em observar o comportamento de outras almas. Os simpáticos garçons num vai-e-vem frenético tentam saciar a sede e os pedidos de algures estrangeiros: apalavraedos em língua comum, se misturam ao rústico bretão.
Ao ar livre, a música criola toma conta de corpos vibrantes na “Plaza del Entrevero”, feito palco improvisado defronte ao enorme monumento em homenagem aos bravos gauchos uruguayos que pelejaram por la República Oriental. E, os centauros – cavalos e gauchos unidos num só corpo -, dão a dramaticidade da ocasião aos bailarinos. Se refestelam com os despojos do inimigo após uma batalha. São homens e mulheres embriagados pelo calor da noite e dos corpos que transcendem, mantendo a identidade incompreensível (ao olhar dos de fora dos trópicos): “como podem ser tão desinibidos?", devem estar a se perguntar os de língua presa.
Enquanto o trago nas mesas sob o mesanino expõem diferenças de classes e caras desconfiadas, a canha em garrafas pets passam de mão-em-mão entre os dançarinos. Sorrisos, miras em ojos rojos y lábios partidos, a cantarolarem os estribilhos da canção dançante. Esses, homens e mulheres em local público que, se faz a casa de tantos na América Latina, seguem os passos e esqueçem as mentes porque a revolução já foi vencida há muito tempo à fuzil e a baioneta. Mesmo.
Como somos felizes, como somos tão iguais e diferentes ao mesmo tempo, mas as diferenças terminam aí. Até mesmo para os de arriba, aqui, na Plaza Fabian, nos parecemos diferentes e somos iguais aos de baixo da linha divisória imaginária, que tanto nos degladiamos por um fim próximo. O por que de tanto ódio? Colonialismo barato. Aculturação que tenta apagar o apagável, pois da memória se apaga o que se quer e se guarda o que não se quer. “Gracias pela lembrança, hermano Luiz!”.
Dois casais conversam freneticamente sobre a Banda Oriental e seus atrativos turísticos. Playa de Pocitos. Ramplas. Mar del Plata. Punta Gorda. Maldonado. Puntas: Ballenas, del Diablo, Leste, dos argentos. Colônia. Sacramento. Ciudad Vieja. Uma hermosa senhorita brasileña se sacode ao embalo da sonoridade gritante da mistura do batuque do candomblê com a voz de veludo da cantora. Pois bem. Um homem com traço hispano-charrua se aproxima da mesa, a minha frente, onde a língua me é familiar. Os gestos, educados da mão à saudação romântica, lhe convidam a bailar. A negativa vêm em sorrisos que desfiguram a face em tom sério. O homem agradece e se retira sem perder a compustura. M-a-l-e-d-u-c-a-d-a. “Sí. Se baila pero no me gusta... me gusta bailar sólo”. Y sólo.
A retribuição do carão vem de acaballo e no corar do rosto da mocita brasileña. O hispano-charrua mira um perro que bailava por entre as pernas dos bailarinos. Não pensa duas vezes. Sem convite e sem carão, segura as patas do cachorro e lhe saca a dançar. Os risos tomam conta da plateia e, a mulher, mais do que corada, agora se envergonha... o pior narcisista de todos é aquele que não se enxerga no espelho.
Saturday, June 27, 2009
Una larga noche
“No pensas que hay de perderse en la noche. Seguro tu mano. Seguro, crea. Pero yo hay de perderme. Perderme zaz en la calle - en el poste de la lamparina a gas, medio cuarto del tercero quarteirão. Ojos cerrados, cerrados ojos de mis ojos que rondam la noche, a penetrar en los comodoros de luces sobre los muros; reflexo en calzadas de piedra jabon con sus postes juntados angularmente a abrir la cortina, cortex de guilhotina guardando impresión en sales de plata, beso dulce en la maçaneta de la puerta a revelar sufriendo, la pantalha-parca luz que encubre nervuras de las alas de los ángeles, en jubilo sereno; ceñida estirpe del gaucho de ojo en el pasado, pasado esta moderno sufrimiento, pasado moderno de ojos no pasados... soamente, palpebras marchitas, como la baqueta a espancar las murgas y los bombos en el funeral.
Respire. Ahora aspire las gotículas de aire sereno como la noche, a congelar sus narinas y, sienta el perfume de las calles vacías en esa hora. No hace tiempo, tenemos que volver para la oscuridad. - no, no, juntar los farelos del espejo del grande globo que un día me hizo feliz; mis piernas bailavam en tablon suspensas por la alegría de tenerme en mis brazos; abrazos ternos que apraziavam mi sufrir. Y tus cabellos negros, hermosos, a perfumar mi rostro; mesclava-si al olor de las hierbas del campo... que ojos negros a robar mi mirar. Que labios carnudos, desnudos llamándome para el placer... el sabor dulce de tu lengua en lugares peligrosos, y la mía a buscar tus mamilos duros de extâse y acuerdo de un sueño sin haber despertado porque mis sentidos me fueron quitados antes dormir y soñar.”
Respire. Ahora aspire las gotículas de aire sereno como la noche, a congelar sus narinas y, sienta el perfume de las calles vacías en esa hora. No hace tiempo, tenemos que volver para la oscuridad. - no, no, juntar los farelos del espejo del grande globo que un día me hizo feliz; mis piernas bailavam en tablon suspensas por la alegría de tenerme en mis brazos; abrazos ternos que apraziavam mi sufrir. Y tus cabellos negros, hermosos, a perfumar mi rostro; mesclava-si al olor de las hierbas del campo... que ojos negros a robar mi mirar. Que labios carnudos, desnudos llamándome para el placer... el sabor dulce de tu lengua en lugares peligrosos, y la mía a buscar tus mamilos duros de extâse y acuerdo de un sueño sin haber despertado porque mis sentidos me fueron quitados antes dormir y soñar.”
Wednesday, March 04, 2009
Sobre atemporalidade do tempo e outras coisas
El cielo ante celeste qui stà colorato. No horizonte se interpõe “rabos de galo” a prenunciar a chuva no alvorecer do amanhã. Meu designo segue como o vento a soprar secamente sobre as carquejas e barbas-de-bode no pampa nu. No entorno do cemitério que um dia se fará minha morada, esse mesmo vento percorre em redemoinhos juntando grãozinhos de areia vermelha a bater em tornozelos desavisados e a levantar saias de moças puras... para felicidade de guris imaturos... dístico d´uma lápide cinchada de trevos da sorte.
O sol implacável amolece moleiras logo após ao meio-dia, refluindo em sua intensidade nas voltas dos arvoredos, na soleira das casas e de seus pátios. Pálpebras preguiçosas lutam na comodidade da sombra à luz dos olhares daqueles acomodados corpos desmaiados à sesta. No alto das araucárias, em meio as nervuras dos cinamomos, cigarras quebram o silêncio ambiente e, capturadas em caixas de fósforo, farão companhia aos besouros na manhã seguinte ao eclodirem da terra, antes do cair dos pingos de chuva, para depois; exércitos colocados na arena lúdica, assim sendo gladiadores se degladeiam em chifradas a fazer a alegria de mãos pequeninas em apostas por gomas americanas ou bolitas compradas no bolicho da esquina.
Sei que, longe dali, o alambrador largou temerário a cerca ao moirão, pressentindo o trovejar do deus nórdico em vias de descarregar sua fúria sob cabeças desprevenidas – ao raio que os parta. O atropelo dos tropeis acorre os carreteiros em busca de guarida em capões-de-mato e, o homem-centauro se faz só um junto aos demônios de chifres em busca de refúgio – Deus, Nosso Senhor! Interceda por nós, Santa Clara!. Promessa de velas acessas...
O dia vira noite, a noite vira dia feito lobisomens e lendas profanas... cruz credo.
Louco afazer aprazado; amolação da faca à cintura enquanto descanso as cordas do fumo de rolo em fios de dedos para fechar o palheiro e guardá-lo no topo da orelha, fico na última seiva do amargo-mate, confabulando comigo mesmo desleais serventias da vida remoçada.
Vejo pés esquadrilharem calçadas de pedra sabão, ruas de chão batido que lhes levam e trazem ao centro econômico e aos arrabaldes, conquanto ao bolicho do “tem tudo”; entre pilhas de latões, baldes de alumínio e, cheiros dispersos de quinquilharias se misturam invadindo narinas que não podem distingui-los sabiamente como o bom cão lanudo do campo a futricar tudo que se chega aos seus grisalhos bigodes. - Porque o pouco que tenho me serve de alimento e nutre minha alma... acho que busquei isto do fundo da cachola em algo que li e não me recordo... talvez sagradas escrituras.
O sol implacável amolece moleiras logo após ao meio-dia, refluindo em sua intensidade nas voltas dos arvoredos, na soleira das casas e de seus pátios. Pálpebras preguiçosas lutam na comodidade da sombra à luz dos olhares daqueles acomodados corpos desmaiados à sesta. No alto das araucárias, em meio as nervuras dos cinamomos, cigarras quebram o silêncio ambiente e, capturadas em caixas de fósforo, farão companhia aos besouros na manhã seguinte ao eclodirem da terra, antes do cair dos pingos de chuva, para depois; exércitos colocados na arena lúdica, assim sendo gladiadores se degladeiam em chifradas a fazer a alegria de mãos pequeninas em apostas por gomas americanas ou bolitas compradas no bolicho da esquina.
Sei que, longe dali, o alambrador largou temerário a cerca ao moirão, pressentindo o trovejar do deus nórdico em vias de descarregar sua fúria sob cabeças desprevenidas – ao raio que os parta. O atropelo dos tropeis acorre os carreteiros em busca de guarida em capões-de-mato e, o homem-centauro se faz só um junto aos demônios de chifres em busca de refúgio – Deus, Nosso Senhor! Interceda por nós, Santa Clara!. Promessa de velas acessas...
O dia vira noite, a noite vira dia feito lobisomens e lendas profanas... cruz credo.
Louco afazer aprazado; amolação da faca à cintura enquanto descanso as cordas do fumo de rolo em fios de dedos para fechar o palheiro e guardá-lo no topo da orelha, fico na última seiva do amargo-mate, confabulando comigo mesmo desleais serventias da vida remoçada.
Vejo pés esquadrilharem calçadas de pedra sabão, ruas de chão batido que lhes levam e trazem ao centro econômico e aos arrabaldes, conquanto ao bolicho do “tem tudo”; entre pilhas de latões, baldes de alumínio e, cheiros dispersos de quinquilharias se misturam invadindo narinas que não podem distingui-los sabiamente como o bom cão lanudo do campo a futricar tudo que se chega aos seus grisalhos bigodes. - Porque o pouco que tenho me serve de alimento e nutre minha alma... acho que busquei isto do fundo da cachola em algo que li e não me recordo... talvez sagradas escrituras.
Saturday, September 13, 2008
Centauros
O traçado português cruza em cruzes o torrão natal. Mira com teu óculo teu oráculo, lá no baixio em quadras simétricas, de 100 metros a mais de pedras de basalto trinchadas a martelo e finca...
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Voltei desperto do sono-mormaço desse dia, onde a preguiça derruba qualquer índio vago, na sesta.
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Rogo aos homens de tronco guaranítico (como eu) que se espalham em vozes anazaladas, ali, à frente da Timbaúva, aproveitando à sombra o enfastiado fiambre. "É ora de despertar. Vide os de castela, os vascos... esses que aí estão assentados em sesmarias. Prometeram-nos, primeiro, a civilidade, a educação, os bons costumes à mesa, os mais sagrados tesouros em compartilho de espólios. Para quê? Para converter-nos em sacerdócios servis, escravos? Viramos o quê? Passivos pacholos em batalhas... descomunais massas de sangue a banhar coxilhas, a engraxar espadas, xerengas e lanças! Serviçais pra toda lide. Pra mim, tchêguê, me basta. Me voy a outras paragens".
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Depois e depois por gerações, entrecruzados tempos contados a invernos, fomos, a pampa, a campo a fora, primeiro, alerdeados de ladrões, contrabandistas, meliantes do tempo e espaço, para, depois, reconhecidos por nossas façanhas, gauchos, de cruza, destemidos, arraigados, centauros das coxilhas orientais. Sim. Podem bradar aos quatro cantos... somos livres como nosso espírito libertário de lança e alma na mão, assombrando impérios... conquistadores da liberdade.
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Voltei desperto do sono-mormaço desse dia, onde a preguiça derruba qualquer índio vago, na sesta.
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Rogo aos homens de tronco guaranítico (como eu) que se espalham em vozes anazaladas, ali, à frente da Timbaúva, aproveitando à sombra o enfastiado fiambre. "É ora de despertar. Vide os de castela, os vascos... esses que aí estão assentados em sesmarias. Prometeram-nos, primeiro, a civilidade, a educação, os bons costumes à mesa, os mais sagrados tesouros em compartilho de espólios. Para quê? Para converter-nos em sacerdócios servis, escravos? Viramos o quê? Passivos pacholos em batalhas... descomunais massas de sangue a banhar coxilhas, a engraxar espadas, xerengas e lanças! Serviçais pra toda lide. Pra mim, tchêguê, me basta. Me voy a outras paragens".
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Depois e depois por gerações, entrecruzados tempos contados a invernos, fomos, a pampa, a campo a fora, primeiro, alerdeados de ladrões, contrabandistas, meliantes do tempo e espaço, para, depois, reconhecidos por nossas façanhas, gauchos, de cruza, destemidos, arraigados, centauros das coxilhas orientais. Sim. Podem bradar aos quatro cantos... somos livres como nosso espírito libertário de lança e alma na mão, assombrando impérios... conquistadores da liberdade.
Thursday, January 10, 2008
Do Diário - Lástimas de Sal
Compreendo o meu estado; meu eu que não eu. Demência. O catre me vitima e me assiste fadadamente e fadado fico. Não como desencanto das bruxas. Essas me aliviam a dor com seus ungüentos e sob efeito destes, acabo relutante como as covinhas de minhas ancas, atento a última golfada de ar suspirar os caprichos que daqui exponho. Se a medicina tradicional não dá cabo, diz a natureza operar seus milagres e a ela se apegam, como eu, politeístas cristãos a claro céu enegrecido das encruzilhadas...despachos de velas coloridas. Envolto na nesga que me traz ao presente, descoloro as pílulas do antes pelo fumacê do depois. Vou a benzedeira; minha última esperança. Agora durmo e sonho e pesadelo.
Estávamos à beira do rio fino de água que corta San Thomé. Do barulho se ouviam grilos e água seguindo seu derradeiro curso. Primitivo o sentido da nossa roda e fogueira ao centro; o estalar dos gravetos em brasa. A platéia de estrelas cintilantes formavam o espelho, onde víamos nossos próprios olhos. Nas mãos: sacos plásticos em cola de forma ausente, com que saíamos de nossos corpos para visões de nossas vidas. Flap flup flap flup. O saco plástico imitava o movimento do diafragma-pulmão. Imitava o momento anterior ao sono profundo...arquejante, spaccio, arquejante, spaccio, contração, spaccio, respiração, pausa, ritmo, coração, fluxo sangüíneo, diminui cadência, compasso diminui, estado alfa-beta...durma.
A mulher de Jó estava sentada na roda de pragma e nos observava temendo repetir-se o caminho que fizera ao olhar para traz. Olhou repentinamente como a me reprovar pelo intento; quase súplica do vício da razão de alterar o espírito presente a drogadição do estado alterado da mente. Não me importei. Não era para tanto, pois não cabe a mim julgar uma visão. Só a viagem daquela fração de segundo poderia explicar mil motivos em minutos finitos: de como o homem se sente poderoso e mesquinho ao dar valor a descrença; ao ato de violar o segredo do xamã.
Aquilo ocorreria mais vezes, mais e mais e pedia que cessasse. A bad trip era sempre a mesma. Me via cercado em uma cratera lunar. Dela brotava sulcos de terra; leiva a misturar-se ao cheiro de enxofre; carne em corpos defumados após a queda de um meteorito. A fumaça envolvia negro o horizonte e impedia o sol de beijar a terra. Após, ouvia gritos desesperados de crianças que corriam sem direção feito baratas envenenadas. Seus rostos traziam feições de abandono. Eu mecanicamente repetia o mesmo: “é o fim, é o fim... acabou o mundo. Acabou e ficamos nós três: o pai, o filho e o espírito santo”.
Bem mais tarde depois de ingerir leite - parte da nossa desintoxicação - lembrava da infância/adolescência quando um amigo da escola contava nos dedos os anos para o fim do mundo. Para ele, o mundo acabaria a meia-noite do ano dois mil. Para minha avó que não era vidente, a vida tinha fim quando corria a primeira lágrima da carpideira, ou quando relembrava cada nome gravado na lápide, data de nascimento e morte de ente-queridos. Isso não a impedia de fazer seus presságios: “o mundo acabará em fogo. Assim seja feita a vontade daquele que é o verdadeiro pai e criador”.
Tudo voltava. Via meus amigos de pragma em suas viagens pessoais. Um ria do pealo que o peão levara do cavalo. Outro se punha de pé, imitando um surfista a pegar uma onda gigantesca. E eu pincelava o céu com meus dedos a procura do zodíaco. Ficávamos sem noção do tempo, entregues à noite e ao silêncio das horas. Ouvíamos nossas respirações e a inquietude serena do bucólico ser inanimado com que convivíamos... os nossos fantasmas.
..........................................
A sociedade julga por demais os vícios e sofregamente os viciados. Não sabe ela estar envolta numa carapuça, armadilha não ilusória. Conquanto insiste em negar a natureza humana por achar demasiada perfeita a razão de se entregar clandestinamente ao que lhe parece verdadeiro. E assim, confortável e pura de espírito não responde por seus atos conservadores; moralmente ultrapassados se dizem juízes da incompreensão que não está nas palavras, mas naquele que não ouve e não vê a negação: a pedra na mão do pecador.
Estávamos à beira do rio fino de água que corta San Thomé. Do barulho se ouviam grilos e água seguindo seu derradeiro curso. Primitivo o sentido da nossa roda e fogueira ao centro; o estalar dos gravetos em brasa. A platéia de estrelas cintilantes formavam o espelho, onde víamos nossos próprios olhos. Nas mãos: sacos plásticos em cola de forma ausente, com que saíamos de nossos corpos para visões de nossas vidas. Flap flup flap flup. O saco plástico imitava o movimento do diafragma-pulmão. Imitava o momento anterior ao sono profundo...arquejante, spaccio, arquejante, spaccio, contração, spaccio, respiração, pausa, ritmo, coração, fluxo sangüíneo, diminui cadência, compasso diminui, estado alfa-beta...durma.
A mulher de Jó estava sentada na roda de pragma e nos observava temendo repetir-se o caminho que fizera ao olhar para traz. Olhou repentinamente como a me reprovar pelo intento; quase súplica do vício da razão de alterar o espírito presente a drogadição do estado alterado da mente. Não me importei. Não era para tanto, pois não cabe a mim julgar uma visão. Só a viagem daquela fração de segundo poderia explicar mil motivos em minutos finitos: de como o homem se sente poderoso e mesquinho ao dar valor a descrença; ao ato de violar o segredo do xamã.
Aquilo ocorreria mais vezes, mais e mais e pedia que cessasse. A bad trip era sempre a mesma. Me via cercado em uma cratera lunar. Dela brotava sulcos de terra; leiva a misturar-se ao cheiro de enxofre; carne em corpos defumados após a queda de um meteorito. A fumaça envolvia negro o horizonte e impedia o sol de beijar a terra. Após, ouvia gritos desesperados de crianças que corriam sem direção feito baratas envenenadas. Seus rostos traziam feições de abandono. Eu mecanicamente repetia o mesmo: “é o fim, é o fim... acabou o mundo. Acabou e ficamos nós três: o pai, o filho e o espírito santo”.
Bem mais tarde depois de ingerir leite - parte da nossa desintoxicação - lembrava da infância/adolescência quando um amigo da escola contava nos dedos os anos para o fim do mundo. Para ele, o mundo acabaria a meia-noite do ano dois mil. Para minha avó que não era vidente, a vida tinha fim quando corria a primeira lágrima da carpideira, ou quando relembrava cada nome gravado na lápide, data de nascimento e morte de ente-queridos. Isso não a impedia de fazer seus presságios: “o mundo acabará em fogo. Assim seja feita a vontade daquele que é o verdadeiro pai e criador”.
Tudo voltava. Via meus amigos de pragma em suas viagens pessoais. Um ria do pealo que o peão levara do cavalo. Outro se punha de pé, imitando um surfista a pegar uma onda gigantesca. E eu pincelava o céu com meus dedos a procura do zodíaco. Ficávamos sem noção do tempo, entregues à noite e ao silêncio das horas. Ouvíamos nossas respirações e a inquietude serena do bucólico ser inanimado com que convivíamos... os nossos fantasmas.
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A sociedade julga por demais os vícios e sofregamente os viciados. Não sabe ela estar envolta numa carapuça, armadilha não ilusória. Conquanto insiste em negar a natureza humana por achar demasiada perfeita a razão de se entregar clandestinamente ao que lhe parece verdadeiro. E assim, confortável e pura de espírito não responde por seus atos conservadores; moralmente ultrapassados se dizem juízes da incompreensão que não está nas palavras, mas naquele que não ouve e não vê a negação: a pedra na mão do pecador.
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